Acesso ao Ensino Superior? Teorias e Mitos

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O (des)atual modelo de acesso ao Ensino Superior tem mais de 20 anos. Aliás, para sermos justos, quase 30 anos, em contraciclo com a descida da taxa da natalidade, a consequente diminuição dos jovens no Ensino Superior e o aumento do número de cursos, desconsiderando, portanto, o contexto e o percurso social, educativo e demográfico!

O direito (internacional) à educação e os princípios democráticos de justiça, equidade e de combate à discriminação no acesso à educação superior continuam a ser sistematicamente "ignorados", e em pouco ou nada acompanham a mudança de paradigma. Ou a respetiva implementação - do contexto pré-escolar ao ensino secundário -, das políticas e práticas de uma educação inclusiva, baseadas numa abordagem de escola para todos (sem exceções), preocupadas com a realização máxima das potencialidades de cada um, prevendo um perfil de saída do aluno com base num conjunto de competências pessoais e sociais, e centradas na saúde e bem-estar de toda a comunidade educativa. Afinal, para quando o definitivo e tão necessário alinhamento e convergências educativa e política?!

Flexibilização no acesso ao Ensino Superior: teorias e mitos. Daria direito a uma edição completa de livros com títulos polémicos! Novas vias, mais oportunidades de acesso para o ensino profissional, tecnológico e artístico, acesso aos Cursos Técnicos Superiores Profissionais (TeSP) e ao Politécnico, diferenças entre médias internas e externas no Ensino Secundário, rankings (abomináveis iniquidades), ensino privado e ensino público, números clausus, educação à distância ou, finalmente, a autonomia das escolas e das instituições de Ensino Secundário e Superior.

A este cenário juntam-se as desigualdades provocadas pela mobilidade de estudantes, os escassos orçamentos familiares e os parcos planos de residências. Ainda as tristezas e frustrações que os jovens do nosso país sentem na medida inversa às míseras casas decimais que os impedem de entrar no Ensino Superior. De entrar na sua 1ª opção. Distante parece ficar a sua plena realização! E voltaremos a ler nas páginas dos jornais sobre o número de alunos que desiste de continuar os seus estudos no Ensino Superior (normalmente entre o 1º e 2º ano dos cursos).

Quais são as condições de livre escolha e de tomada de decisão informada - processos de que se ocupam os psicólogos - dos alunos? Ora vejamos:

No decorrer dos 8º e 9º anos de escolaridade, um conjunto de seis alunos de uma escola do distrito de Braga, depois de um processo de intervenção psicológica para o desenvolvimento vocacional, optou por escolher um curso profissional de multimédia. Mas não foi possível porque, nesse ano, a sua escola não tinha alunos suficientes para abrir esse curso e o "Prof" convenceu-os de que valeria a pena ficar na escola. A escolha recaiu então para um curso profissional de eletrónica (parecido!), o que aparentemente não foi desgostado e, no final, três dos alunos decidiram candidatar-se ao curso de Engenharia Informática.

Tiveram de fazer um treino de estudo intensivo extra para o exame nacional de Matemática A, pois a aposta no domínio sociocultural e técnico-prático do curso não preparara o suficiente para um exame nacional centrado exclusivamente em conteúdos curriculares que aparentemente só estão acessíveis aos cursos científico-humanísticos. No dia do exame nacional estavam ansiosos, mas acabou por correr bem! Mas qual não foi o espanto e a média do exame de Matemática A voltou a subir este ano. Daí que apenas o João entrou, e não antes da sua 5ª opção, em Engenharia Eletrónica, em Lisboa. Os outros dois não entraram.

Os resultados chegaram no domingo e até sexta-feira havia que se inscrever no curso, pagar propinas, procurar quarto, submeter papéis para o passe, etc., etc. Os pais do João meteram dois dias de férias e abalaram com ele de camioneta para Lisboa. Depois de dezenas de telefonemas, visitas e contas, concluíram que não podiam pagar 350€/mês por um quarto, e o facto dos seus pais ganharem pouco mais do que o ordenado mínimo não permitia ter direito ao apoio social... O João concorreu à 2ª fase e está agora na esperança de conseguir ficar numa das suas três primeiras opções. E toda a correria da procura de quarto quiçá se repetirá no dia 30 deste mês, quando saírem os resultados da 2ª fase!

Urge combater as desigualdades. Estabelecer, sim, critérios (de representatividade) que considerem o rendimento familiar, a etnia, o território e as suas assimetrias, mas também experiências de trabalho prévio ou de ações de voluntariado que se tenham tornado uma mais-valia no desenvolvimento de outras competências não meramente académicas. O ensino à distância pode ser uma solução para as assimetrias territoriais de acesso, mas carece de reflexão sobre novas metodologias e práticas pedagógicas, bem como de regulamentação própria em função da especificidade dos cursos.

Urge rentabilizar o Perfil do Aluno à Saída da Escolaridade Obrigatória, isto é, - incluir o conjunto de conhecimentos, capacidades, atitudes e valores, bem como experiências de cidadania e desenvolvimento -, para influenciar uma ação mais global e concertada de acesso ao Ensino Superior. Urge também criar e alinhar um Perfil de Competências à Saída do Ensino Superior, apontando para as atuais exigências do Mercado de Trabalho. Afinal, a autonomia, o sentido crítico ou a persistência não são também elas competências e atitudes relevantes para a frequência do Ensino Superior?

Sabemos que a classificação nos exames nacionais não é o melhor preditor de sucesso no Ensino Superior, e contribui para uma seleção social. Por outro lado, de entre os precursores do seu abandono encontramos a insatisfação com a área ou o curso, o afastamento geográfico da família e amigos, as dificuldades financeiras, e a pressão para o sucesso com base em resultados. Sabemos ainda que o crescente incentivo à competitividade, patente no investimento de todo um secundário orientado para médias e para a preparação para exames nacionais que têm um peso sobredimensionado, tem vindo a aumentar a pressão para o sucesso académico, com impacto significativo na saúde mental dos jovens adultos (ansiedade, depressão...).

Mas, e a motivação? As capacidades, os valores e a vocação? A aprendizagem por prazer e não por obrigação? As competências para o exercício ativo da cidadania? Onde está a real valorização de três anos (ou antes, de 12 anos) de percurso e compromisso intenso com o desenvolvimento de competências, capacidades e atitudes?

Por fim, projetando-se o prosseguimento para estudos superiores, porque não delegar a autonomia pedagógica e científica do secundário ao secundário e do superior ao superior? Com respeito pelas competências de cada um, e numa base de intensa cooperação em prol da definição conjunta de critérios de acesso mais equitativos. Porque não um grupo de trabalho de cooperação de profissionais do ensino secundário e do ensino superior para preparar devidamente e coerentemente um maior alinhamento de perfis de saída e curricula, entre ensino secundário e ensino superior? Recordo as mais-valias de processos desta natureza desenvolvidos em colaboração com psicólogos em contexto escolar, para apoiar e suavizar as transições entre ensino pré-escolar e 1º ciclo, e as transições nos ciclos subsequentes: acolhimento, acompanhamento, tutoria, mentoria e supervisão são alguns dos exemplos de medidas que valorizam os contextos e os projetos de vida dos alunos. Porque persistimos nesta clivagem na passagem para o Ensino Superior?

Sofia Ramalho, Vice-Presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses

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