AC/DC em Lisboa. O plano A depois dos planos B

B, de Brian Johnson. E, infelizmente, também de Bon Scott. A, de Axl Rose: um recurso que vem lançar todas as dúvidas sobre um dos concertos mais aguardados do ano
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Se os ouvidos de Brian Johnson, cantor dos AC/DC durante mais de três décadas e meia, não tivessem cedido e deixado os fãs da banda com apitos de alarme e zumbidos de desconfiança, era certinho que o grupo da linha dura preferido pelos motards - e por muito mais gente - cumpriria a sua escala portuguesa (marcada para amanhã, dia 7, no Passeio Marítimo de Algés) com a competência, a generosidade e o brilhantismo habituais. Tal como sucedeu ao longo dos espetáculos do segmento norte-americano já cumprido.

Para mal dos nossos pecados, a surdez iminente do cantor deixou os criadores de Girls Got Rhythm, mesmo acostumados a momentos difíceis e a peripécias dignas da mitologia rock, a viver a sua segunda grande crise. A primeira foi, até, mais violenta, quando os AC/DC quase se despistaram na autoestrada do êxito - tinham lançado o explosivo álbum Highway to Hell - ao serem confrontados com a morte de Bon Scott. Agora, tratou-se de preservar a saúde auditiva (ou o que resta dela) de Brian, que tão bons serviços prestou à causa.

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Convenhamos que a fórmula resolvente adotada dificilmente poderia suscitar maior controvérsia: de todas as possibilidades avançadas para a substituição, mesmo temporária (e convém lembrar que o compromisso conhecido do cantor dos Guns n"Roses com estes parceiros de ocasião diz respeito apenas a uma dúzia de espetáculos, os que integram o braço europeu da digressão Rock or Bust), nenhuma implicaria gestos tão desesperados por parte dos seguidores dos AC/ /DC. A chamada de Axl Rose chegou a ser classificada como "uma piada de mau gosto". Não se entende, sequer, a necessidade de o comunicado oficial que anunciou a chegada de Axl contemplar a revelação de que teria sido o próprio cantor a disponibilizar-se para a tarefa. O que torna possíveis duas leituras: a do gesto solidário de Rose perante o infortúnio de um colega de profissão, por um lado; por outro, a ideia que fica a pairar de que os AC/DC entraram em "saldo" ou, pelo menos, em facilitismo, não procurando uma solução mais sólida e mais duradoura, antes aceitando aquilo que o voluntarismo alheio lhes deixou à disposição. E é neste quadro, em que se evitam as sentenças prematuras mas não pode fintar-se o céu carregadinho de nuvens, que Portugal se transforma num "banco de ensaio", ao assinalar a estreia deste casamento de conveniência.

Mexidas no alinhamento?

Preparávamo-nos, então, para ir buscar o prazer garantido a um show dos AC/DC, inteligentemente conscientes de que - mais do que nunca - é no palco que marcam a diferença, uma vez que os anos mais criativos e rompedores ficaram lá atrás, apesar dos esforços muito consequentes de Black Ice e Rock or Bust, os dois únicos álbuns de originais editados neste século. O alinhamento dos concertos norte-americanos espelha essa lucidez da banda. Ora vejamos: duas ou três canções de Rock or Bust (o tema-título, a alternativa entre Got Some Rock & Roll Thunder e Play Ball, a possível passagem por Baptism of Fire, nos casos em que esta não acabava preterida a favor de Given the Dog a Bone), uma de Black Ice (Rock" n"Roll Train), outra de The Razor"s Edge, álbum de 1990 (Thunderstruck).

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Tudo o resto, no mínimo três quartos das escolhas, uma vez que os AC/DC cumpriram rigorosamente vinte canções, encore incluído, leva-nos a recuar pelo menos 35 anos até encontrarmos os discos que serviram de embrulho aos temas. Em particular destaque, andou o primeiro trabalho de Brian Johnson com a banda: Back in Black acumulava cinco (Shoot to Thrill, Back in Black, Hells Bells, Shoot to Thrill e Have a Drink on Me) ou seis (a tal hipótese de Given the Dog a Bone) dos seus inspirados hinos. Significa um quarto - ou mais - de toda a prestação do grupo, que também não esquece outros cartões--de-visita, como High Voltage, Shot Down in Flames, Let There Be Rock e, claro está, Highway to Hell e For Those about to Rock (We Salute You). Ninguém melhor do que Angus Young - o único fundador resistente - poderá justificar esta tendência: ele sabe que ninguém vai aos espetáculos dos AC/DC privilegiar a busca pelas novidades, sejam elas mais ou menos palpitantes. Aquilo que justifica as romarias, absolutamente transversais quanto às idades dos "peregrinos", é a celebração, o reencontro com momentos que ganharam perenidade e que acompanharam e/ou motivaram várias gerações de headbangers (passe a expressão, quer designar aqueles que "abanam o capacete"...).

A questão fica em suspenso, com a presença de Axl Rose: será que ele consegue ir a todas, tanto em quantidade como em especificidade, sabendo-se que o timbre vocal não se aproxima do de Brian Johnson? Respostas, só mesmo amanhã à noite.

A última maldição?

Pode até acontecer que os AC/DC superem mais este drama. Afinal, o respetivo currículo, nessa matéria, dava para escrever uma tragédia exemplar. Despediram o cantor da pré-história, Dave Evans, que nunca chegou a gravar e foi acusado de andar demasiado próximo do glam rock. Depois, morreu Scott. Phil Rudd, que mais tarde voltaria ao elenco, foi afastado na sequência de uma cena de pugilato com Malcolm Young. Em 2014, nova partida, nova viagem para Rudd: foi condenado a prisão domiciliária por envolvimento com drogas, conseguindo ainda assim livrar-se de uma acusação de tentativa de homicídio. Há pouco mais de dois anos, em abril de 2014, o grupo perdia um dos seus líderes, Malcolm Young, atacado pela demência e, durante algum tempo, obrigado a reaprender todas as canções antes de cada concerto. Vive hoje numa casa de repouso. Chega?

Venderam mais de 200 milhões de discos mas, insisto, precisam do palco como de pão para a boca. Mas ninguém pode assumir como uma surpresa que "pendurem as botas" depois de terminada esta digressão, cuja segunda fatia norte-americana ainda não foi esclarecida. Amanhã, entram em campo em Algés. E, vale a aposta, não será jogo de tripla: ou ganham muito ou perdem tudo. E tudo por causa de um Rose cheio de espinhos.

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