Acabou a mensagem de Natal televisiva do Patriarca de Lisboa

Fundada no salazarismo e sem provisão legal, a "tradição" da "mensagem de Natal" na RTP do cardeal patriarca de Lisboa chegou ao fim. A televisão pública foi avisada em cima da hora por Manuel Clemente de que não haveria mensagem, porque a existir caberia ao presidente da Conferência Episcopal. Este tinha já gravado um vídeo, que enviou às redações.
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Pela primeira vez desde que o cardeal Manuel Cerejeira, Patriarca de Lisboa de 1929 a 1971, inaugurou, em pleno salazarismo, as "mensagens de Natal" da Igreja Católica na televisão do Estado - então a única emissora televisiva existente -, a programação da RTP não incluiu esse espaço no alinhamento de 24 de dezembro. Terá sido o próprio Manuel Clemente, atual cardeal patriarca de Lisboa, a determinar o fim destas mensagens.

É o que garante ao DN a responsável pela comunicação do patriarcado: "Já no ano passado o senhor Dom Manuel Clemente tinha dito à administração da RTP que não se sentia à vontade ao falar em nome da Igreja Católica, e que devia ser o presidente da Conferência Episcopal a fazê-lo."

A explicação dada ao DN pela RTP coincide: a estação tinha previsto filmar a mensagem como de costume, mas quando entrou em contacto com o patriarcado para combinar o envio da equipa, foi surpreendida pela recusa de Manuel Clemente, que a justificou exatamente com a ideia de que a existir mensagem de Natal da responsabilidade da Igreja Católica ela deve ser protagonizada por quem foi eleito pelos bispos nacionais como seu representante - o presidente da CEP.

Este, que é neste momento o bispo de Leiria-Fátima, José Ornelas, tinha preparado uma mensagem vídeo, que enviou a todas as redações, e que a RTP incluiu nos seus espaços noticiosos, à imagem do que faz por exemplo com as mensagens de Natal do papa.

Questionada, por intermédio do seu porta-voz, o padre Manuel Barbosa, sobre se vai ser doravante esse o procedimento, e se a Igreja Católica desiste de um "tempo de antena" criado numa altura em que a Constituição, após a revisão de 1951, declarava a religião católica "religião da Nação Portuguesa", a Conferência Episcopal não confirma nem desmente: "De facto o presidente da CEP enviou aos órgãos de comunicação social uma mensagem de Natal em vídeo, que teve o acordo e contributo dos membros do Conselho Permanente [do qual faz parte, por inerência, o patriarca de Lisboa]. Não podemos garantir que, de futuro, se repita o procedimento deste ano."

Quanto ao motivo da recusa de Manuel Clemente, a explicação da CEP alinha-se com as já dadas ao jornal: "Desde que deixou de ser presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, o atual cardeal-patriarca de Lisboa tem declarado que deve ser o presidente da CEP em exercício a representar a Igreja Católica em Portugal, nomeadamente em atos protocolares. O facto de não ter existido mensagem de Natal do cardeal-patriarca na RTP inscreve-se neste princípio."

Se vários católicos contactados pelo DN confessaram não ter reparado que a emissão não tinha desta vez acontecido, houve, num artigo de opinião no jornal Observador, quem (João Paulo Vieira, identificado como "professor", e que uma pesquisa no Google revela "professor de Educação Moral e Religiosa Católica") se interrogasse sobre essa ausência - "O que fizemos à mensagem de Natal do Patriarca?" - colocando várias hipóteses, entre as quais que se tivesse tratado de uma decisão da RTP, atinente à laicidade do Estado, ou que Manuel Clemente se tivesse recusado a gravar a mensagem pelo facto de 2022 ter sido um ano difícil para si, "pela questão da proteção e dos abusos de menores, com a qual teve de lidar", para concluir: "Nada disso me faz sentido".

Já o bispo emérito das Forças Armadas e de Segurança, Januário Torgal Ferreira, reparou e achou "muito bem". A sua igreja, explica, "não devia ter nenhum bispo de Lisboa a ir falar à RTP, não há qualquer fundamento para isso. Essa tradição lamentável era do tempo do cardeal Cerejeira, porque na altura o patriarca de Lisboa era por inerência presidente da CEP - e andávamos aqui num país de hierarquias e eminências. Sempre achei que o bispo de Lisboa devia declinar, e que não se deveria ter permitido que se criasse a ideia de que o chefe da Igreja em Portugal é o cardeal patriarca. Este deveria depois do 25 de Abril ter deposto as suas armas e dito que não há chefe nenhum."

Quanto à manutenção da mensagem de Natal da sua igreja na RTP, este clérigo reflete: "Todos os dias as religiões têm um lugar televisivo e radiofónico. Acho que se calhar devia haver opções muito mais pluralistas, saber se esses tempos são bem aproveitados. Sou favorável à existência dessa mensagem de Natal como tempo de antena, mas se me disserem que a opinião pública portuguesa vê isso como uma lesão à laicidade, eu não terçaria armas."

De facto, a questão já foi levantada, e várias vezes, pela Associação República e Laicidade (ARL), que há muito vem apontando para o facto de que, "existindo já um espaço específico para as várias comunidades religiosas (na RTP 2), a difusão anual das mensagens do cardeal patriarca da igreja católica fora desse espaço e num formato semelhante ao de um tempo de antena constitui um privilégio incompatível com a laicidade do serviço público e que deve, portanto, terminar." Em 2017, o comunicado da associação chamava a atenção para que a mensagem, "dirigida genericamente aos portugueses", não se havia coibido de "ser politicamente polémica, ao tomar partido contra o direito à morte assistida".

Nos anos seguintes a ARL fez comunicados nos mesmos termos, sublinhando sempre a existência de um espaço específico para as confissões religiosas, e que a mensagem de Natal ocorria "num formato semelhante ao de um tempo de antena", sem "tratamento jornalístico nem qualquer outro tipo de moderação". Este ano, a 27 de dezembro, assinalou no Twitter a ausência da mensagem, considerando-a "positiva", mas questionando o motivo: "A decisão partiu da RTP, do governo ou da ICAR [Igreja Católica Apostólica Romana]?"

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A decisão, como se constata, partiu da ICAR. Porém, como sublinha a ARL, a emissão da dita mensagem, que, como mencionado, teve o seu início no Estado Novo e quando a Constituição em vigor assumia - apesar de afirmar o princípio da separação em entre Estado e religiões - uma religião "oficial", não tem qualquer enquadramento legal.

Isto porque o que está legalmente estabelecido em termos de "tempo de antena" não inclui as confissões religiosas, as quais, como apontam quer a ALR quer o bispo emérito Torgal Ferreira, têm pelo menos desde 1990, através da lei nº58/90, de 7 de setembro ("Regime da atividade de televisão"), previsto um espaço televisivo próprio, referido no artigo 25º deste diploma - "Tempo de emissão para confissões religiosas". Aí se estatui que "no serviço público de televisão é garantido às confissões religiosas, para o prosseguimento das suas atividades, um tempo de emissão, até duas horas diárias, no 2.º canal", sendo "a atribuição e distribuição do tempo de emissão referido (...) feita segundo critérios objetivos e de acordo com a representatividade de cada confissão."

Em 2001, na Lei de Liberdade Religiosa, e igualmente no artigo 25º, volta a garantir-se a alocação desse tempo de emissão televisivo, e também radiofónico, nas emissoras públicas, "às igrejas e demais comunidades religiosas inscritas" ["inscritas" são as confissões consideradas "radicadas"], sendo a "atribuição e distribuição do tempo de emissão (...) feita tendo em conta a representatividade das respetivas confissões e o princípio da tolerância, por meio de acordos entre a Comissão do Tempo de Emissão das Confissões Religiosas e as empresas titulares dos serviços públicos de televisão e de radiodifusão."

A dita comissão, "constituída por representantes da Igreja Católica e das igrejas e comunidades religiosas radicadas no País ou das federações em que as mesmas se integrem", é designada por despacho governamental, por período de três anos.

Dela faz parte, neste triénio, como representante da Igreja Católica, Paulo Rocha, que admite ao DN o facto de a "mensagem de Natal" até 2021 transmitida pela RTP não estar incluída nos tempos protocolados de emissão das confissões religiosas, e portanto encontrar-se fora daquilo que a lei prevê. "É algo que é muito anterior a estas disposições legais, não está incluído no protocolo."

Apesar de reconhecer que se trata de "um tempo de emissão de uma confissão religiosa", garante que o tema nunca se colocou no seio da comissão: "É um assunto que nunca foi abordado. Creio até que é uma iniciativa da RTP."

Não foi possível encontrar uma explicação sobre como, e por iniciativa de quem, se iniciaram as "mensagens de Natal" protagonizadas pelo cardeal Cerejeira. Mas, sendo o atual enquadramento constitucional e político muitíssimo diferente, relevante será saber se é aceitável a manutenção de um "tempo de antena" excecional, sem provisão legal, para a Igreja Católica, numa alocução de dignidade semelhante à das que representantes do Estado como o Presidente da República e o primeiro-ministro proferem em ocasiões específicas.

Um "falar ao país" que se reveste de significado político, como reconhece o presidente da Comissão de Liberdade Religiosa, Eduardo Vera Jardim: "São mensagens políticas num sentido amplo".

Apesar disso, e de corroborar que a mensagem em causa não está incluída na regulamentação específica sobre tempos de emissão para as igrejas, não tendo qualquer enquadramento legislativo - "É uma coisa à parte, excecional" - Vera Jardim mantém a posição expressa em 2019 em reação, precisamente, a mais um comunicado da Associação República e Laicidade no qual esta exigia o fim daquilo que vê como "um privilégio": "Não me suscita objeção especial. Há quem critique e ache que não devia existir. A crítica é livre, mas eu não sou dessa opinião."

À pergunta do DN sobre como classifica aquele espaço, o histórico socialista responde tautologicamente: "Do meu ponto de vista é uma mensagem de Natal. Uma mensagem da igreja maioritária sobre o Natal."

Respondida de forma tão aparentemente simples, a questão - "pode um operador de televisão ceder total ou parcialmente o direito de emissão televisiva a outras entidades, designadamente religiosas", e "em que termos é que as igrejas ou comunidades religiosas podem - se o podem - aceder à atividade de televisão, e no atual quadro jurídico", foi considerada suficientemente complexa para que o governo de Cavaco Silva solicitasse em 1994, "com caráter de urgência", e por via do seu então ministro-adjunto Luís Marques Mendes, um parecer sobre a matéria ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República.

O motivo foi a intenção da SIC de ceder "certo tempo de emissão televisiva" à Igreja Universal do Reino de Deus. Uma das conclusões do parecer de 1994 era de que não havia obstáculo legal à ideia, formulada pela SIC, de que a emissão em causa era "publicidade não comercial", visando "promover uma confissão religiosa". Porém o governo voltaria a questionar o Conselho Consultivo sobre o mesmo assunto em 1995, chamando a atenção para o facto de que entretanto fora alterado o Código da Publicidade, que passava, no seu artigo 7º, a proibir a publicidade que tivesse como objeto "ideias de conteúdo sindical, político ou religioso" (o que se mantém na versão atual do diploma).

Em face dessa mudança legislativa, o novo parecer concluiu pela ilicitude de "toda a publicidade destinada a promover uma confissão religiosa, ou que tenha por objeto ideias religiosas", sendo possíveis "medidas cautelares destinadas a fazer cessar, suspender ou proibir aquela publicidade". Esta ilicitude, informa-nos o parecer, vigorava a partir de 22 de janeiro de 1995.

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