Acabaram as audições. As certezas, as dúvidas e as contradições

Fernando Medina, ministro das Finanças, disse esta sexta-feira na comissão de inquérito à TAP que convidou Alexandra Reis para sua secretária de Estado do Tesouro sem saber que meses antes tinha recebido uma indemnização de meio milhão de euros da TAP.
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Quarenta e nove audições depois, terminando esta sexta-feira com o ministro das Finanças, Fernando Medina, a comissão parlamentar de inquérito (CPI) à TAP entra agora numa nova fase, a da preparação do relatório final, a cargo da deputada do PS Ana Paula Bernardo.

Em 24 de dezembro de 2022, o Correio da Manhã noticia que Alexandra Reis, secretária de Estado do Tesouro desde dia 2 desse mês integrando a equipa do ministro Fernando Medina nas Finanças, tinha meses antes (em fevereiro) deixado a administração da TAP recebendo uma indemnização de meio milhão de euros (nessa altura, o ministro das Finanças era João Leão e o ministro das Infraestruturas Pedro Nuno Santos). Em 26 de dezembro, o ministro Medina e o ministro Pedro Nuno Santos (Infraestruturas) pedem à TAP informações, confirmando-se a tal indemnização (e Medina reencaminhou esta resposta para a Inspeção Geral das Finanças). Em 27 de dezembro, Alexandra Reis demitiu-se do Governo, a pedido do ministro. Dois dias depois, a 29, o ministro Pedro Nuno Santos também deixa o Governo.

Poucos dias depois, em 5 e 6 de janeiro, o Chega e o BE, respetivamente, propõem a constituição de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI). Em 3 de fevereiro é chumbada a proposta do Chega e aprovada a do BE (com votos a favor de todos os partidos, menos o PS e a IL, que preferem a abstenção). A CPI propõe-se, no essencial, "avaliar o exercício da tutela política da gestão da TAP, em particular no período entre 2020 e 2022, sob controlo público". Também quer avaliar a forma como Alexandra Reis deixou a TAP e, em geral, "as práticas quando a pagamentos indemnizatórios". A CPI tomou posse dia 22 de fevereiro. O presidente seria Jorge Seguro Sanches, do PS, que em maio se demitiu, sendo substituído por outro deputado do PS, Lacerda Sales.

Na prática, apenas um, João Leão. Sendo verdade que ainda era titular das Finanças quando Alexandra Reis deixou a TAP com uma indemnização de meio milhão, ficou comprovado que o seu ministério não foi disso informado. Na CPI, João Leão disse que soube dessa indemnização "pelos jornais" (portanto só em dezembro de 2022, quando já não era ministro desde março).

Embora o ex-ministro passe o tempo a salientar que expiou a culpa ao demitir-se do Governo, dizendo além do mais que agiu de "boa-fé" e que até deixou a TAP com lucro pela primeira vez em 50 anos, os factos são incontornáveis: autorizou a indemnização de meio milhão da TAP a Alexandra Reis, que depois a IGF consideraria ilegal (e que daria em março deste ano pretexto ao Governo para despedir a CEO da empresa, Christine Ourmières-Widener, e o chairman, Manuel Beja) . Este foi o primeiro erro grave. Depois, quando convidou Alexandra Reis para presidente da NAV (empresa pública de gestão do espaço aéreo), não lhe perguntou ("não tinha de o fazer") se tencionava devolver o meio milhão recebido meses antes da TAP. Além do mais, deu ok a um comunicado da TAP à CMVM (em 4 de fevereiro de 2022) comunicando a saída de Alexandra Reis com base na informação de que a gestora tinha deixado a TAP pelo seu próprio pé, para "abraçar novos desafios". Na verdade, Alexandra Reis deixou a transportadora empurrada pela CEO da empresa, que a queria fora. Por último, Pedro Nuno Santos foi o ministro do secretário de Estado mais desastrado desta história. Hugo Mendes fica para a história por três erros de palmatória: escreveu um mail à CEO da TAP pedindo-lhe que alterasse um voo Maputo-Lisboa por suposta conveniência de um seu passageiro, o Presidente da República; esqueceu-se de informar as Finanças das condições de saída de Alexandra Reis da TAP; e quando o seu ministro e o das Finanças (Medina) pediram informações à empresa sobre essa saída, na sequência da manchete do Correio da Manhã, participou ele próprio na preparação da resposta da empresa. Hugo Mendes só não estará politicamente morto se um dia o seu amigo Pedro Nuno Santos o recuperar.

Na verdade esta história toda começou porque Fernando Medina convidou Alexandra Reis para o Governo sem lhe perguntar de eventuais telhados de vidro. Esta sexta-feira, o ministro das Finanças assegurou na CPI que o fez sem saber da indemnização recebida pela gestora. Segundo garantiu, só soube disso em 21 de dezembro de 2022 (já Alexandra Reis era sua secretária de Estado do Tesouro há três semanas), quando o Correio da Manhã lhe fez perguntas sobre a matéria que depois seria manchete no dia 24. Ao convidar Alexandra para o Governo, Medina nada lhe perguntou sobre o seu passado na TAP. O ministro sabia, isso sim - confirmou-o esta sexta.feira - das divergências que na transportadora tinham existido entre a CEO e Alexandra (e que estiveram na origem da saída desta da empresa). Não as considerou relevantes porque não eram divergências "estratégicas". Sendo assim, no seu entender, não havia problema em que, como secretária de Estado do Tesouro, fosse tutelar financeiramente a TAP tendo esta empresa à frente uma gestora com quem teve uma relação conflituosa ao ponto de a obrigar a sair da empresa. Medina, apesar de tudo, saiu esta sexta-feira relativamente incólume desta CPI, mesmo tendo sido dele o pecado original que pôs os holofotes apontados a Alexandre Reis e ao meio milhão que esta tinha recebido para deixar a TAP. Mas tem uma espada em cima da cabeça. Em março deste ano, num comunicado conjunto com o ministro das Infraestruturas (já João Galamba), despediu a CEO da TAP e o chairman da empresa. Fê-lo baseado num relatório da IGF que considerou ilegal todo o processo que levou à saída de Alexandra Reis (e a respetiva indemnização, claro). Portanto: o Governo (Medina + Galamba) afastaram a CEO porque esta tinha feito algo para a qual fora autorizada pelo Governo (Pedro Nuno Santos). Pode ser um argumento forte para agora Christine Ourmières-Widener arguir em tribunal a ilegalidade do seu despedimento. E fazer-se pagar caro por isso.

Já a CPI prosseguia os seus trabalhos em velocidade cruzeiro quando o ministro João Galamba (que sucedeu a Pedro Nuno Santos na pasta das Infraestruturas) protagonizou um dos eventos políticos mais rocambolescos da história democrática. Envolve queixas de agressões físicas, o suposto roubo de um computador portátil contendo documentos classificados, queixas à PJ e à PSP e uma intervenção do SIS (Serviço de Informações de Segurança, ou seja, a "secreta" interna).

Tudo aconteceu na noite de 26 de abril passado. Ao chegar a Lisboa vindo de Singapura, o ministro telefona ao seu adjunto Frederico Pinheiro (que tinha herdado de Pedro Nuno) e exonera-o. Galamba alega que o adjunto lhe mentiu ao dizer que não tinha tirado notas de uma reunião (em 17 de janeiro) que o tinha juntado a ele (o adjunto) à CEO da TAP e ao deputado do PS Carlos Pereira. Essa reunião - que ficaria conhecida como a "reunião secreta" - antecedeu em um dia a participação de Christine Ourmières-Widener numa reunião da comissão de Economia para falar da demissão de Alexandra Reis (a CPI ainda não existia).

Depois de exonerado ao telefone, o adjunto vai ao ministério buscar o seu computador portátil de serviço. Lá encontra quatro funcionárias do gabinete (a chefe de gabinete, duas assessoras de imprensa e uma adjunta) que não o querem deixar levar o computador. Puxões, empurrões e alegadas agressões - e Frederico consegue mesmo levar o computador para casa. Até que lhe telefona um agente do SIS intimando-o a devolvê-lo. À porta de sua casa, o adjunto demitido entrega o computador ao dito agente. O equipamento segue depois para o CEGER (o organismo do Estado que controla a rede informática do Governo) e acaba na PJ.

Primeira contradição: Frederico Pinheiro diz na CPI que a "reunião secreta" foi mesmo para antecipadamente manipular o depoimento da CEO de forma a proteger o Governo e o PS. Galamba nega isso e a própria Catherine também.

Segunda contradição (e mais grave): Galamba afirma na CPI que o SIS foi chamado a intervir por "orientação" do gabinete do primeiro-ministro, na pessoa do seu secretário de Estado adjunto, António Mendonça Mendes. Porém este, também na comissão, nega-o: "O reporte ao SIS não decorreu de nenhuma sugestão, orientação ou indicação da minha parte nem da de nenhum membro do Governo."Antes, já o próprio primeiro-ministro tinha jurado que só soube da intervenção do SIS depois de acontecer. A oposição à direita do PS acusa Galamba de mentir ao Parlamento.

Portanto, quem telefonou às "secretas" foi afinal a chefe de gabinete de Galamba, Eugénia Correia. E o SIS, informado, atuou porque achou que tinha de atuar, sem receber nenhuma ordem governamental para isso. Todavia, tratando-se daquilo que o próprio António Costa qualificou como um "roubo" - ou seja, um crime - estaria o SIS, que não é um órgão de polícia criminal, habilitado a intervir? Ou isso só poderia ter ficado a cargo da PJ ou da PSP? Por iniciativa do Bloco de Esquerda, a PGR está a analisar o caso. E isto é só mais um facto a provar que todo este caso tenderá a prosseguir mesmo depois de encerrada a CPI.

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