Acabar com os domingos e com a tolerância. Ponto.

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Um debate por vezes muito intolerante, a propósito da tolerância de ponto que o governo concedeu para amanhã, dia 12. Um debate que tem quase sempre ignorado o fácil desvirtuamento que se tem feito do conceito de tolerância de ponto (e já lá irei). E que, de novo, vai buscar estafados argumentos sobre a traição à laicidade do Estado. Como se os crentes católicos não fossem, também eles, cidadãos de corpo inteiro, com direito a não ser menosprezados pelo Estado.

Aliás, para acabar com esta influência católica sobre o Estado (ou judaico-cristã, para alargar mais o âmbito), tenho uma proposta simples: acabar com o gozo de sábados e domingos enquanto dias de descanso. Afinal, essa pesada herança religiosa que foi a instituição de um dia de descanso semanal (o sábado judaico e o domingo cristão) ainda é, seguramente, uma ameaça à laicidade. Por arrastamento, poderia acabar-se com todos os feriados que cheirem a catolicismo: desde logo, os vários dias de férias à volta do Natal e do Ano Novo (feriado religioso, na sua origem), a "ponte" da Páscoa e todos os outros.
É verdade que centros comerciais, hipermercados e outros sectores de actividade económica bem se têm esforçado por acabar com essa criação religiosa perniciosa, que foi o descanso semanal, o dia do "louvor a Deus". Muitos trabalhadores são sujeitos a regimes de trabalho cada vez mais escravizados, sem regras nem horários, o que é, como se sabe, o caminho certo para pôr um ponto, sem tolerância, na ideia do direito ao descanso.

A ajuda a esta ideia tem vindo até de governos. No caso português, os anteriores executivos bem se esforçaram: um, permitindo a abertura de hipermercados e centros comerciais em horários alargados; o outro, usurpando quatro feriados. Tudo em nome da produtividade. Porque, como se sabe, as pessoas devem dedicar as suas vidas apenas ao trabalho. O ócio, o lazer, a cultura, o tempo para a família ou os amigos, o desporto, tudo isso são actividades impróprias de pessoas.

Apesar dessas ajudas preciosas, o direito ao descanso, uma proposta que vem da civilização judaico-cristã, ainda subsiste na legislação e em muitas práticas. Por isso, é conveniente acabar, de vez, com essas heranças católicas e religiosas que só prejudicam o bom desempenho económico, industrial e financeiro... e de uma sã laicidade, claro... Porque, se é para respeitar a laicidade, devemos respeitá-la até ao fim e não admitir nenhum resquício da tutela religiosa sobre as sociedades.

Outra questão é o que significa a tolerância de ponto e o abuso que dela se tem feito. Talvez, também, em mais este caso concreto. Tolerância de ponto é isso mesmo: permitir que um trabalhador a possa invocar para faltar ao trabalho sem ser, por isso, penalizado. Mas o seu desvirtuamento leva (tem levado...) ao encerramento de serviços, ao inevitável adiamento de cirurgias (porventura, a pior consequência), a um dia de férias extra, ao aproveitamento de todos da possibilidade de um benefício que, em princípio, se dá a alguns.

Não me choca que haja pessoas beneficiadas por um facto ou um acontecimento e que outras não o sejam. A vida está cheia de exemplos disso. Por isso falamos em tolerância - seja ela de ponto, ou seja ela um ponto. Hoje e amanhã, milhares de cidadãos têm de ser tolerantes com os seus médicos, em nome do direito à greve. Sábado à noite, outros terão de tolerar que haja quem invada as ruas por causa de um eventual título desportivo.

A intolerância com que hoje se fala na praça pública, essa sim, é que deveria ser intolerável. Para todos nós.

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