Abuso sexual de crianças e o acórdão de que tanto se fala

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O que é o abuso sexual de crianças? Toques e carícias de cariz sexual por baixo da roupa são considerados atos de relevo?

Um acórdão recente do Tribunal da Relação de Évora veio reduzir a pena de um professor, anteriormente condenado por vinte crimes de abuso sexual de crianças, entendendo ter ocorrido o crime de importunação sexual e não de abuso sexual de crianças.

Este acórdão começa por referir que "A lei penal não fornece uma densificação do conceito de ato sexual de relevo, nem casuística exemplificativa", o que confere margem de apreciação a quem julga. Logo de seguida, reconhece que o comportamento do arguido com as suas alunas é absolutamente desajustado em ambiente escolar, entre professor e aluna, e tem cariz sexual. No entanto, entende-se que este comportamento "não tem o relevo exigido pelo n.º 1 do artigo 171.º do Código Penal - (i) porque ocorreu apenas uma vez, com cada uma das referidas crianças, (ii) porque ocorreu em público e (iii) porque, como primeira abordagem do género, é suscetível de ter deixado dúvida, em meninas tão jovens, quanto ao seu propósito".

Vejamos, então, estas três questões em separado:

(i) Sobre o comportamento ter ocorrido apenas uma vez com cada uma das referidas crianças.

Diz-nos o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15/05/2014, que um "acto sexual de relevo é um comportamento activo, o qual objectivamente considerado assume uma natureza, um conteúdo e um significado directamente relacionado com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de autodeterminação sexual de quem a sofre ou pratica (...)". Esta definição de ato sexual de relevo não alude à frequência do comportamento, e bem, até porque se, em abstrato, a frequência é uma variável que pode agravar o trauma, isso não significa, de todo, que situações pontuais não tenham igual potencial traumático.

(ii) Porque ocorreu em público.

O facto de um comportamento de cariz sexual ocorrer num contexto público pode ser indicador de dificuldade em controlar os impulsos, por exemplo, ou mesmo de uma fantasia ou distúrbio sexual. Ou seja, esta situação em nada diminui a gravidade dos factos.

(iii) Como primeira abordagem do género, é suscetível de ter deixado dúvida, em meninas tão jovens, quanto ao seu propósito.

Sabemos que as crianças mais novas e imaturas sentem, muitas vezes, dificuldade em perceber a verdadeira motivação dos comportamentos sexuais de que são vítimas, atribuindo-lhes outro significado. Os comportamentos de duplo significado são, aliás, uma estratégia que muitos agressores sexuais utilizam. Significa isto que, mesmo quando as crianças não entendem o verdadeiro propósito dos comportamentos de cariz sexual, tal não diminui a gravidade dos mesmos. Aliás, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22/07/2013, refere a este propósito que: "(...) O consentimento da vítima não possui virtualidade para eximir o agente da responsabilidade criminal, por a lei partir do pressuposto, próximo da constatação natural, que o menor, por regra, não possui o desenvolvimento psicológico suficiente para compreender as consequências, por vezes graves, deles emergentes, que podem prejudicar gravemente o desenvolvimento da sua personalidade física e psíquica, no aspecto do livre desenvolvimento da personalidade na esfera sexual (...)".

Uma vez que a lei penal não fornece uma definição clara do conceito de ato sexual de relevo, parece-nos importante compreender o que diz a ciência psicológica sobre estas questões. Sabemos que a violência sexual de crianças e adolescentes pode ser concetualizada como uma experiência traumática, não apenas pelos comportamentos que envolve, mas também pelo facto de ocorrer numa fase do desenvolvimento de particular vulnerabilidade, o que pode potenciar os efeitos negativos, que podem surgir de forma imediata ou após algum tempo, e ser de curta ou longa duração. Neste contexto, parece-nos manifestamente desadequado minimizar o relevo de um comportamento sexual atendendo à frequência do mesmo, ao local onde ocorreu ou à imaturidade das vítimas.

Psicóloga clínica e forense, terapeuta familiar e de casal

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