"Na Europa encontro compaixão e um sentido da cultura"

Abel Ferrara, nome emblemático do cinema independente americano, foi um dos homenageados do LEFFEST.
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Regressou a Portugal para apresentar os seus dois filmes mais recentes: Alive in France e Piazza Vittorio, documentários que refletem a evolução da sua própria vida pessoal, nomeadamente a escolha da Europa para viver. O certo é que, de uma maneira ou de outra, o espírito independente made in USA continua a marcar o seu trabalho.

Em Alive in France, surge com a sua banda de rock"n"roll - como é a sensação de estar frente à câmara?

É uma óptima sensação. Queria interpretar aquelas canções e reunir-me em palco com toda aquela malta, em especial o Joe Delia que há muito tempo compõe música para os meus filmes - são velhos amigos.

Na sua filmografia, há um título de ficção científica, Body Snatchers (1993), que se destaca pela sua produção. Que memórias guarda dessa experiência?

É verdade: era um filme de estúdio, da Warner Bros., e com um grande orçamento. Foi filmado em CinemaScope, numa rodagem longa, em Selma, Alabama, um lugar complicado. Fizemo-lo à maneira clássica, até porque tínhamos na história original de Jack Finney um excelente ponto de partida. Aliás, na altura já existiam duas versões da história, uma de Don Siegel (1956), uma verdadeira obra-prima, outra de Philip Kaufman (1978). Tentámos preservar uma certa estilização que vinha de Siegel - não foi fácil, mas o filme que existe corresponde àquilo que queríamos fazer.

Quando se trabalha com os grandes estúdios a liberdade criativa é menor?

Mais dinheiro pode implicar menos liberdade. Quando se trabalha com um grande estúdio, não se fala de "autores". Apesar de tudo, convém lembrar que a Warner era o estúdio a que estava ligado Clint Eastwood. A margem de liberdade era grande, maior do que noutros estúdios e muito maior do que agora. Foi por essa altura que, também na Warner, Oliver Stone fez JFK e Spike Lee Malcolm X. Mas agora parece-me que não estão interessados em fazer mais filmes com realizadores de Nova Iorque...

Como definiria a situação atual?

Não posso abdicar da minha visão: trabalha-se em grupo e a visão tem de ser a do realizador - ponto final. Não vale a pena envolver ninguém que não reconheça essa base de trabalho: é uma comunidade e as ideias de todos são bem-vindas, mas o realizador tem direito à última palavra. Aliás, tem direito à primeira palavra e à última palavra.

E o que é que muda, ou não, quando faz filmes a partir de pessoas verdadeiras como Pasolini (2014) ou Welcome to New York (2014), inspirados em Pier Paolo Pasolini e Dominique Strauss-Kahn?

Quando estamos a fazer um filme, a única coisa que existe é o mundo de faz-de-conta que estamos a criar. O que quer que seja, ou foi, a realidade... Podemos filmar nos mesmos cenários, usar as mesmas roupas, mas o momento é outro. Não se trata de invocar o fantasma de Pier Paolo, ou seja de quem for...

Welcome to New York acabou por ser pouco visto, não tendo sido lançado em muitos países, incluindo Portugal. Terá tido influência a contemporaneidade da própria personagem?

Talvez. Mas há sempre outras questões, desde os problemas de distribuição até ao facto de haver muita gente que deixou de ir regularmente ao cinema. Há filmes que encontram logo a sua audiência, outros que demoram 50 anos a consegui-lo... Mas os filmes existem, estão aí - e quem quiser realmente vê-los, acaba por encontrá-los.

Há cada vez mais filmes que as pessoas veem streaming.

Absolutamente.

Será que se está a perder algo da relação clássica com o cinema?

Tenho sentimentos contraditórios. Não creio que seja uma questão de perda. E é verdade que, mesmo na Internet, se pode obter uma boa qualidade de imagem. No fundo, a questão é saber como é que o trabalho artístico pode continuar - como é que os fulanos que fazem filmes podem... continuar a fazer filmes. Porque, por vezes, as pessoas andam a roubar esses filmes que custaram dinheiro. E, no entanto, a Internet podia ser um grande elo ligação dos artistas com os espectadores, numa partilha planetária.

No seu caso, como é que vê filmes?

Quando venho a festivais, tento ver filmes. Vejo-os também no meu computador e, como dou aulas, vejo muitos filmes com os meus alunos - aproveito todas as oportunidades.

Recentemente, fez algumas boas descobertas?

Sim, sem dúvida. Serão, sobretudo, filmes que pouca gente viu, coisas como uma curta de 10 minutos feita por um miúdo de 19 anos que passou, algures, num festival... E tenho alunos que são mesmo muito bons. Além do mais, não vejo televisão, pelo que não estou a seguir todas essas séries que agora se fazem. Na verdade, o que faço mais é ler - faça-me perguntas sobre livros.

O que é que anda a ler?

Solzhenitsyn. Svetlana Alexievich - o livro dela sobre Chernobyl é qualquer coisa de poderoso.

E o seu novo filme, Piazza Vittorio, como é que o apresentaria?

É um documentário sobre a zona de Roma em que vivo: a Piazza Vittorio, perto de Santa Maria Maggiore, onde, em 1948, Vittorio De Sica filmou Ladrões de Bicicletas. É uma zona multiétnica, um pouco à maneira de Nova Iorque, com muitos emigrantes, especialmente agora, vindos de África e da Europa de Leste, muitos deles vítimas de guerras terríveis. Digamos que tento fazer um pouco aquilo que faz Svetlana Alexievich: dar a palavra às pessoas, deixá-las falar.

Quer isso dizer também que decidiu viver na Europa?

Vim cá fazer um filme, encontrei Christina, tivemos um bebé (tenho uma menina com dois anos e meio) - a minha escolha é a Europa. Não compreendo o que está a acontecer nos EUA, especialmente em Nova Iorque, a "cidade que nunca dorme", etc. Talvez tenha chegado ao meu limite, talvez precisasse de alguma mudança. É certo que ainda o mês passado estive lá a filmar... O ar tornou-se insuportável, a comida é péssima, os preços estão completamente fora de controle, a cidade foi entregue aos ricos, é uma espécie de recreio para os que querem roubar dinheiro ao mundo todo - está tudo bem se se tiver uma carrada de dinheiro, mas não é essa a minha cena.

Será que a "sua" Nova Iorque já não existe?

Nova Iorque muda todos os dias. Além do mais, eu sou do Bronx, que é outra Nova Iorque...

E o que é que encontra de tão especial na Europa?

Encontro compaixão, um sentido da cultura... As coisas aqui têm dois ou três mil anos; o meu país tem uma história de 300 ou 400 anos, está ainda a descobrir o que é ou pode ser. Aqui, não é a procura do lucro que comanda: encontro respeito pela vida, pelos lugares, de umas pessoas pelas outras. Em última instância, tem a ver com o modo como se coloca luz numa sala - quem iluminou esta sala fê-lo respeitando as pessoas que se vão aqui sentar.

Abel Ferrara nasceu no Bronx, em Nova Iorque, em 1951, de ascendência italiana e irlandesa, tendo tido uma educação profundamente católica.

Começou com The Driller Killer (1979), um thriller com componentes de terror, tendo-se sempre mantido ligado as áreas da produção independente. No princípio da carreira, Ferrara trabalhou também para algumas produções televisivas de Michael Mann, incluindo a série Miami Vice. O Rei de Nova Iorque (1990), retrato do líder de um gang de drogas, protagonizado por Christopher Walken, foi decisivo na sua projeção internacional. Body Snatchers (1993) é o único título da sua filmografia ligado a Hollywood. A sua afirmação como independente passa por títulos como Polícia Sem Lei (1992), em que Harvey Keitel interpreta um detetive tentando redimir-se dos seus vícios, Os Viciosos (1995), um filme de vampiros, e o drama policial O Funeral (1996). Entre os seus documentários incluem-se Chelsea Hotel (2008) e Alive in France (2017).

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