Abbas Kiarostami: que descanse debaixo de uma cerejeira
E a Vida Continua... diz-nos, neste momento, com muita poesia um dos títulos de Abbas Kiarostami. O mais internacional dos cineastas iranianos morreu esta segunda-feira, num hospital em Paris, onde se encontrava internado. Segundo a agência noticiosa Isna, que confirmou a morte, o realizador de O Sabor da Cereja era ali submetido a tratamentos cirúrgicos, na sequência de um cancro gastrointestinal diagnosticado em março. Com o seu desaparecimento, desvanece-se um pouco desse cinema "em elogio da vida", como referiu ao The Guardian Mohsen Makhmalbaf, realizador iraniano que é atualmente Presidente da Academia Asiática de Cinema.
Nascido em Teerão, em 1940, Kiarostami teve um acesso indireto à arte cinematográfica. Estudou pintura na universidade da capital, e iniciou um inconsciente percurso (como o próprio admitia) enquanto designer gráfico, tendo também filmado anúncios publicitários para a televisão iraniana, até chegar a um projeto que seria determinante: o Kanun - Centro para o Desenvolvimento Intelectual de Crianças e Jovens Adultos. Aqui, dirigindo o departamento de cinema a partir de 1969, deu o primeiro impulso a uma carreira que se revelaria brilhante.
Entre os filmes que continuamente fez para o Centro, ao longo de duas décadas, assinou também a sua primeira longa-metragem, The Report, em 1977, incluindo, no seguimento, a magnífica trilogia Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (1987), inolvidável jornada de um menino à procura do colega para entregar o caderno que levou por engano - vencedor do Leopardo de bronze em Locarno -, E a Vida Continua (1992) e Através das Oliveiras (1994), em que regressa à mesma vila de Koker, a norte de Teerão, para registar as consequências de um terramoto ocorrido na região. Já aqui Kiarostami ía ensaiando um olhar de traço documental, sendo aos seus filmes rodados no Irão que devemos um importante conhecimento do país.
Profundamente enraizado, o cineasta deixou-se ficar ainda nesse país após a Revolução Islâmica de 1979, conciliando o seu trabalho com as exigências da censura, e fomentando um grupo de cineastas que iam cruzando a sua obra - como a referência ao citado Mohsen Makhmalbaf em Close-Up (1990), sobre um homem que se fez passar por esse realizador (também neste filme, a tecelagem das fronteiras entre a ficção e o documentário é de extraordinária subtileza), ou a assistência de realização de Jafar Panahi em Através das Oliveiras (de quem Kiarostami também produziu e escreveu The White Balloon).
O Sabor da Cereja seria o filme do seu definitivo reconhecimento internacional, ao receber a Palma de Ouro em 1997, centrado num homem que conduz o seu jeep à procura de alguém que o enterre debaixo de uma cerejeira, depois de cometer suicídio. E os carros deixaram realmente marcas na longa estrada que é filmografia de Kiarostami, protagonizando um modelo de excecional narratividade repetida em Dez (2002), e nos títulos que realizou já fora do Irão: Cópia Certificada (2010), com Juliette Binoche, e Like Someone in Love (2012), rodados, em Itália e no Japão.
A verdade é que, após a ascensão ao poder de Mahmoud Ahmadinejad, tornou-se difícil para Kiarostami continuar a filmar no Irão, mas, sublinhe-se, esta fuga concreta não o desligou da poesia emanada do seu cinema. É como se houvesse uma paisagem interior, cultural - para lá das imagens - transportada por cada filme, como se sente em O Vento Levar-nos-á (1999) e Shirin (2008). E o desejo deste cineasta que visitou Lisboa em 2004 (Cinemateca) e em 2010 (Estoril Film Festival) era, de facto, voltar a filmar no seu país.
Nos próximos dias 7 e 8, o Cinema Ideal presta-lhe homenagem, com a exibição de Shirin e Like Someone in Love.