A voluntária que leva livros aos órfãos e sonha ver nascer um Nobel no Chibuto

Brunch com a fundadora da Aidglobal, Susana Damasceno.
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"Vais aprender a ensinar/Vais ensinar a aprender/Educar pra cooperar e acontecer." Assim reza o refrão do hino que Sebastião Antunes compôs para dar voz à Aidglobal, com direito a videoclip gravado pelas ruas de um Portugal então confinado. A ação foi mais um passo no caminho de solidariedade que Susana Damasceno começou a traçar há 16 anos na associação a que deu vida e que há boa parte deles conta com espetáculos solidários como O Fado Acontece para angariar fundos para ajudar as suas missões, sobretudo levando educação às crianças moçambicanas.

"Eu só queria ser professora, foi o que quis desde criança. E sempre adorei livros", conta-me com um sorriso que a ilumina toda. Estamos à mesa do restaurante do Museu Nacional de Arte Antiga, longe da sede do Parque das Nações mas perto do coração de Susana Damasceno, que para ali fugia em adolescente para "ler e estar em paz" - de vez em quando ainda reincide e por isso foi esse refúgio que escolheu para me contar do trabalho que a move nos projetos de literacia e desenvolvimento de cidadania a que dá vida com muita ajuda. "Os anjos vão aparecendo", resume, simplificando um processo que pouco tem de simplicidade.

Inconformada e combativa, "determinada e obstinada", diz ela, resumindo-se como "uma grande chata", vai ao fim do mundo pelo que quer cumprir e o voluntariado teve a sorte de lhe surgir como caminho de missão. "Foi uma coisa muito emotiva, nada pensada. Eu sempre fui muito atenta aos mais vulneráveis, desde criança, fazia-me confusão a pobreza e cedo me entendi como uma privilegiada por ter nascido em Portugal, numa família com muito afeto e estrutura, de pais com um forte sentido de cidadania, que refletem sobre o que se passa à volta." Mas para o interesse se realizar como vocação foi preciso uma viagem a Moçambique a fazer voluntariado num orfanato.

Com uma empada de aves e água à frente, morangos e café, relata-me o início de um percurso que lhe deu as raízes para fazer nascer e crescer a Aidglobal, tal e qual como as plantas do pequeno jardim lá de casa, às quais dedica muito do raro tempo livre que tem, tantas vezes partilhado com o filho, João, de 10 anos. O início do percurso não fugiu aos planos: tirou curso de professora, na variante português/inglês, e completou a licenciatura com os Estudos Portugueses e uma pós-graduação em Português como Língua Não Materna. E foi à educação que dedicou os primeiros anos - ou, verdadeiramente, todos, ainda que já não o faça como simples professora desde que decidiu mudar de vida, aos 31 anos.

"Tinha planeado um périplo de mochila às costas pelas ilhas de Cabo Verde quando li numa revista um artigo sobre um jovem que organizava uma viagem de voluntariado a Moçambique e mudei de planos." Da redação conseguiu o telefone do organizador, propôs-lhe juntar-se à equipa e aplicou a isso as poupanças que tinha para as férias. E embarcou para uma viagem de 20 dias e muitas vidas. A experiência naquele orfanato no Chibuto, Gaza, foi de tal forma intensa que no último dia ligou aos pais à beira do pequeno lago que refrescava as margens da paupérrima aldeia que partilhava uma faca de lâmina cega e lhes agradeceu "a vida maravilhosa e as oportunidades" de que tinha beneficiado. Sentada numa pedra, refletiu sobre o que fazer com tudo o que tinha vivido, sentido e aprendido nos dias ali passados, nas noites partilhadas com os outros voluntários a comer beringela frita e a dormir espartilhados em cinco beliches. Deixou A Filha do Capitão, que levara de Portugal, de herança a um antigo da aldeia que era como ela, apaixonado por livros. E mal chegou à sua Lisboa, escreveu uma mensagem a todos os familiares, amigos e demais conhecidos a perguntar se a ajudariam a fundar uma ONG.

"Um mês e meio depois, a 4 de novembro de 2005, nascia a Aidglobal", com a ajuda de 50 pessoas, incluindo o jornalista angolano Guilherme Galiano, da RDP África, a sua antiga professora santomense de Literatura Africana Inocência Mata, o artista plástico brasileiro Renato Rodyner e o ator português André Gago. Meteu-se num curso de Cooperação e Desenvolvimento do INA, fez uma formação na universidade de Humboldt.

"Nos primeiros cinco anos não tive férias nem fins de semana. Os voluntários iam para minha casa, fazíamos de tudo ali, fui bater à porta de todas as ONG para saber que instrumentos havia, a quem recorrer, como proceder", conta Susana Damasceno. E quando sentiu que podia crescer, foi ter com um amigo que tinha algum dinheiro e pediu-lhe pagasse os salários de dois voluntários para a ajudarem - nessa altura, ela acumulava as aulas dadas na Casa Pia com os estudos e a Aidglobal e precisava de uns pares de mãos que a libertassem para melhor pensar e realizar o projeto. "Ele confiou em mim e propôs pagar dois anos às pessoas que eu selecionara desde que eu atingisse três objetivos nesse tempo: criar a minha equipa, garantir a sustentabilidade da organização e ajudar o máximo de pessoas." Acabada de entrar em quadro de zona pedagógica, Susana meteu licença sem vencimento prolongada na escola e mãos à sua obra e a Aidglobal cristalizou-se no que é hoje, agora com 20 pessoas a trabalhar entre Lisboa, a Madeira e Moçambique.

"As primeiras coisas que enviámos, num contentor de uma associação guineense, foram para a Guiné Bissau", conta-me, exemplificando a sua veia reorganizativa com o material que angariou na Casa Pia e que recheou um dormitório inteiro de um orfanato. Na Aidglobal, só as secretárias foram compradas, tudo o resto foi doado: "O lixo dos outros é a nossa sorte", garante. Moçambique tornou-se um caso sério quando conseguiu ir a reboque do curso Decode (Diploma de Especialização em Cooperação para o Desenvolvimento) e da equipa vencedora do melhor projeto. Os contactos e a aprendizagem levaram-na aos primeiros projetos da Aidglobal, com a missão de construir um furo de água para uma aldeia. O tema era-lhe caro, tendo Susana nascido só com um rim e sabendo bem das maiores faltas das crianças daquela região: água e livros para beber. A estrear-se na filmagem, fez um documentário para angariar fundos, a Dança da Água, e até o estudo de engenharia conseguiu de graça, mas vendo que esse objetivo já estava então atingido pelas irmãs que ali faziam trabalho com as populações, inteirou-se numa conversa com a presidente do município que no Xai Xai estavam precisados de livros. Era a sua praia e a sua oportunidade de fazer a diferença. "Pus toda a gente à procura e até hoje já montámos cinco contentores e enviámos 70 mil livros", conta.

Mas não chegava. Se só quem vivia na cidade tinha acesso ao espólio das bibliotecas municipais, havia que garantir oferta nas bibliotecas escolares. E nestas, pensou, os livros ficavam parados porque não havia ali a cultura do livro, por isso deitou mãos a criar atividades de animação de leitura para os professores porem essas ferramentas tão importantes na mão dos miúdos. Seguiram-se os livros de iniciação à leitura oferecidos a todos os bebés que nasciam no hospital rural, as histórias contadas em português e língua changana a mães e bebés do Chibuto, a edição bilingue do Grão de Milho Mágico, de autora costa-marfinense Véronique Tadjo, os livros de capulana com os nomes dos animais em português e língua changana. De cada uma das 18 vezes que já foi a Moçambique, muitas delas levando consigo novos voluntários para o terreno, acrescentou e aprendeu e partilhou. "Para a semana abrem cinco escolinhas para as crianças mais pobres", orgulha-se.

Também em Portugal desenvolve programas de educação para a natureza e a descarbonização, para a inovação no ensino e sobretudo para o desenvolvimento da cidadania global, por detetar essa necessidade enquanto associação juvenil equiparada e ouvir ideias preconceituosas sobre refugiados. "Não evangelizamos, mas informamos com independência, damos as ferramentas para os jovens refletirem e desenvolverem pensamento crítico. E também fazemos capacitação de professores."

A maior prova do êxito da Aidglobal é que "não há semana que passe sem receber candidaturas espontâneas de jovens e contactos de reformados que querem ajudar". Nem sempre é fácil integrá-los, dada a especificidade técnica do trabalho que ali desenvolvem, que vai dos contratos de trabalho ao acesso a linhas de financiamento, passando por carregar contentores e ler histórias. Mas finalmente Susana Damasceno conseguiu formar uma equipa que lhe garante chefias intermédias e uma estrutura sénior.

Pergunto o que lhe falta fazer. "Acabei de entrar num doutoramento de Estudos sobre a Globalização a que gostava de me dedicar. E de criar coleção de artigos cuja receita de vendas servisse para angariar fundos para a associação. E tenho muita vontade de escrever um livro para crianças - já tenho até as personagens escolhidas." É a sua raiz a levantar-se, a mesma que passou ao filho João, com quem diz ter uma relação triangular: "Eu, ele e os livros; todas as noites lemos uma história com as vozes das personagens e ele adora ler." Há de levá-lo a Moçambique em breve.

E quando não está a trabalhar ou em família, o que faz? "Descanso, que é o que mais preciso, de paz. Já tive uma vida muito interessante, ia ao teatro, a exposições, a concertos...", ri-se. Agora, o seu hobby, além das plantas, são as aulas de tango. "E danço sozinha em casa muitas vezes."

Quando nos despedimos, confessa que gostava de ver a Aidglobal sobreviver-lhe, mas não é coisa que a angustie: "Acho que ainda vou abraçar muitos desafios na vida e sei que com a associação já toquei muitas vidas. Tudo nasce e morre, o que fica é a caminhada, e esta da Aidglobal tem sido muito rica. Só quero se seja reconhecida para que nela invistam, não quero que seja a maior, mas a melhor."

E enfim confidencia-me o objetivo maior que a move: "Ver nascer um Nobel da Literatura do Chibuto, alguém que tenha evoluído graças àquelas bibliotecas e tenha conseguido alimentar dentro de si um mundo maravilhoso que venha a transmitir pela escrita."

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