A violinista para quem Bach é uma viagem sem fim conhecido

A alemã Isabelle Faust, uma das grandes violinistas da atualidade, toca às 19.00 a solo no Palácio de Queluz, em recital integrado no Festival Cantabile. Na bagagem, apenas Johann Sebastian Bach
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Um concerto, uma intérprete, um compositor. Maior concisão e despojamento é difícil. Mas é isso que Isabelle Faust (n. 1972) fará justamente hoje, no Palácio de Queluz.

Há mês e meio, no Festival de Salzburgo, ela tocou as seis Sonatas e Partitas de Bach num único recital, na Igreja do Colégio, para críticas rendidas. Hoje traz "só" três: Partita n.º 3, Sonata n.º 3 e Partita n.º 2 - esta, famosa entre todas pela monumental Chaconne conclusiva: "Quando faço as seis, o que felizmente acontece com grande regularidade, costumo reservar estas para a 2.ª parte. Elas são para mim o apogeu do ciclo e, por isso, se é só um recital, escolho-as", explica. O recital de Salzburgo ainda vai fresco: "Sim, foi a mais recente ocasião em que fiz as seis e foi uma experiência incrivelmente feliz para mim! Claro que são muitas notas e é precisa uma concentração muito prolongada, mas é um esforço perfeitamente realizável e depois é imensamente gratificante!" Tanto assim que nem fica cansada: "Uma das críticas que saíram dizia que, no final, eu parecia mais fresca do que o público!", conta, rindo com gosto.

Isabelle Faust, aqui interpretando a Allemande, andamento inicial da Partita n.º 2, em ré m, BWV1004, obra que interpretará este fim de tarde em Queluz:

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Música transcendente
Comentando o recital à luz do conceito de "musica sacra" que preside ao Cantabile 2016, a diretora artística (e violetista) Diemut Poppen, após tecer os mais rasgados elogios a Isabelle Faust, fala de Bach como "a ordem absoluta na música, a perfeita harmonia e arquitetura"; e destas obras, que "são ainda o que de mais elevado e belo alguma vez se escreveu para violino", "início de tudo quanto veio depois" e "início da tradição virtuosística desde então desenvolvida pelos violinistas".
Para Isabelle, elas "são sempre um desafio, mesmo que já as toque há décadas [começou a abordá-las "aos 9 ou 10 anos e desde então têm vivido sempre comigo"]. Há sempre muitas perguntas que surgem e às quais não se consegue responder com clareza, mas apenas com diferentes colorações". Isso deve-se, quer "à antiguidade das obras [Bach tê-las-á começado a escrever há 300 anos]", quer "às especificidades que apresentam e para as quais não dispomos de informação". É que, esclarece, "as tradições interpretativas da época, a praxis tacitamente aceite entre os violinistas, isso não chegou até nós. Por isso nunca haverá certezas". Salva-nos - e "salva-a" - que "a música não é só certezas" e esta música, especificamente, "é daquelas a que podemos regressar infinitas vezes, com a certeza de que intelectual e emocionalmente seremos sempre catapultados até altitudes tais como nenhuma outra música consegue".

Descobre nelas "um emaranhado de dimensões a operar", mas que, nota, "temos de transmitir de forma convincente e lógica" - mais adiante, falará de "uma leveza, uma elegância, que obsta a qualquer sobre-elaboração"... Compara a natureza das obras e os desafios que colocam a "um caleidoscópio, cuja aparência/superfície estão sempre a variar, mas que não deixa por isso de ser sempre um objeto uno".
Isabelle é a famosa portadora (por empréstimo de um banco alemão) do Stradivarius Bela Adormecida, que se estima datar de 1704. Di-lo ótimo para Mozart e Beethoven, mas, acrescenta, "a leveza, transparência, clareza, e a luz que transporta no seu som fazem dele um instrumento muito bonito para Bach". Depois, finaliza, "uso uma cópia fiel de um arco barroco, que salienta essas qualidades, porque é mais leve e favorece o jeu détaché".


Improvisar e ser fiel
Outra característica interpretativa de Isabelle em Bach é a inclusão da improvisação: "Sim, mas muito limitada" - responde, sorrindo. "Digamos que são pequenas modificações feitas no momento em relação ao que costumo fazer..." A limitação prende-se outrossim com o facto de "Bach ter, na maior parte das situações, escrito por extenso toda a ornamentação que deseja". Locais de eleição para essa "improvisação controlada" são "os andamentos lentos, ou, por exemplo, a Loure da Partita n.º 3". Mais comuns, acrescenta, são "pequenas variações de dinâmica, articulação ou arcada".
O que nos leva à questão da fidelidade, que Isabelle resume e define da seguinte forma: "Temos de conhecer bem o texto e o que ele nos diz, tanto ao nível musical como simbólico, isto é, o que certas características significavam no tempo em que estas obras foram escritas". É que, afirma, "é óbvio que os músicos daquele tempo não tocavam apenas o que estava fixado na partitura!" Daí que, para Isabelle, "a fidelidade à música e ao compositor faz-se conjugando o conhecimento do texto musical e o das práticas performativas da época".


A Isabelle que aí vem em disco
Após o Bach integral em Salzburgo, Agosto foi passado... com Bach: "Sim, estive a gravar as Sonatas para violino [e cravo obbligato] com o Kristian Bezuidenhout. A gravação deverá sair na próxima primavera". Antes disso, revela, "sairá dentro de um mês a gravação dos concertos de Mozart que fiz com os Giardino Armonico" e no horizonte estão "a gravação do Concerto em mi m de Mendelssohn com a Orquestra Barroca de Friburgo e outra, com obras de câmara de Chausson e Franck". Esta, com um pormaior: "Optámos por usar um piano histórico, um Érard francês, por razões de equilíbrio geral e de clareza da parte pianística. E depois, esses pianos têm uma certa qualidade nostálgica na sonoridade que, acho, se adequa muito bem a estas obras".

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