A violência de uma abstenção
Este é um orçamento com "medidas violentas e profundamente injustas", diz António José Seguro, que diz ter ficado "em estado de choque" diante dos seus conteúdos - consequência: abstém-se para reforçar a respectiva base de aprovação. "Tudo farei para evitar que Portugal passe pela situação que está a viver a Grécia", clama - e, por isso, abstém-se na votação de um orçamento que traz para as nossas vidas o pior do receituário imposto à Grécia. É imperioso "que se levante esse estigma que o Governo colocou sobre os funcionários públicos", afirma -, e daí resulta que se absterá na votação de um orçamento que brutaliza a condição de funcionário público. "Compreendo que é necessário dar um sinal político forte quanto à convicção de que as principais forças políticas têm de que é necessário sair da crise", garante - pois o PS escolheu o sinal que vai dar: abstém-se.
Não fosse o ridículo trágico de tudo isto já bastante e Seguro ainda entendeu acrescentar-lhe uma pérola: a abstenção do PS será "violenta". A tentativa de mascarar de coragem e de músculo o que não é mais do que uma mostra de fragilidade só veio sublinhar a natureza caricatural que tem hoje a oposição do PS ao programa extremista da direita. Que Seguro recorra aos argumentos de Cavaco como arma de arremesso contra o Governo - juntando-se ao coro dos que, à direita, clamam pela imposição da austeridade mais severa aos trabalhadores do sector privado - é bem a prova da perda de um norte programático pelo PS.
O álibi do "superior interesse nacional" já só chega para a cosmética da pose solene e compungida, mas para mais nada. Em seu nome, os partidos sociais-democratas da Europa têm operado uma reformulação histórica do seu quadro de valores, incorporando os pressupostos básicos do programa liberal. Chamam a isso coragem. Tony Judt, um social-democrata que não caiu aos pés da deriva liberal, deu-lhes a resposta certa: "Hoje em dia, ficamos orgulhosos ao ser suficientemente duros para infligir dor nos outros. Se ainda vigorasse um costume mais antigo, pelo qual ser duro consistia em suportar a dor e não em a impor, talvez devêssemos pensar duas vezes antes de preferir com tanta insensibilidade a eficiência à compaixão."
Por mais violenta que se reclame, a abstenção do PS não é senão isso: uma abstenção, uma transigência, um laissez passer. Um sinal inequívoco de que, para o Largo do Rato, o programa extremista do Governo não justifica um gesto claro de oposição. Na encruzilhada, o PS escolheu de novo juntar-se à direita liberal, privatizadora e destruidora do Estado social. Não foi obrigado a isso, optou. Invoca Seguro um abstracto sentido de responsabilidade para justificar este injustificável braço dado com o Governo. Sinal dos tempos: para o secretário-geral do PS e os seus companheiros, são os mercados financeiros e os credores internacionais que definem os bons padrões de responsabilidade a que o PS se vincula, não os seus militantes de base, os seus activistas sindicais ou os seus quadros profissionais qualificados. Nem sequer os seus eleitores. A razão é óbvia: é que para estes não há "austeridade digna", há apenas austeridade. A que pune de modo incompetente e injusto.
Num momento em que França e Alemanha abrem a porta à exclusão das economias periféricas, como a nossa, de uma Zona Euro única - criando um Euro só para ricos - e se torna assim patente que todos os sacrifícios impostos aos portugueses serão em vão, invocar a responsabilidade para justificar a escolha da recessão e da austeridade é a mais irresponsável das atitudes. Não se pode exigir que Vasco Pulido Valente compreenda isto. Mas ao Partido Socialista exige-se que o faça.