A verdadeira história dos testes nucleares norte-americanos

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Nem sempre é preciso deambular pelos subúrbios da História para encontrar um caso de conspiração. Às vezes, a manipulação da verdade consiste na omissão deliberada de certos pormenores escabrosos e pouco convenientes de factos históricos bem conhecidos e documentados. Tal é o caso da corrida pela conquista do átomo. Durante as décadas dos anos 40 e 50, os cogumelos nucleares floresceram em muito maior profusão do que aquela que o público em geral supõe e em condições que ainda hoje nos causam calafrios. Esta é a história dessa época e dos homens que se sentiram deuses criando o maior pesadelo que a humanidade jamais enfrentou.

Finalizada a guerra fria e com a promulgação da Acta de Liberdade de Informação, que regula a desclassificação de segredos oficiais quando as circunstâncias indicam que já perderam o seu carácter de matéria reservada, os Estados Unidos - na década de 1990 - parecia estar a viver a sua versão peculiar da perestroika. Os aficionados da parapolítica deram um verdadeiro festim com a desclassificação de documentos que confirmavam todas aquelas estranhas teorias que os tinham tornado credores do qualificativo de "alarmistas" por parte dos seus concidadãos mais conformistas. Outros, desconfiados até às últimas consequências, nem assim se deixaram levar pelo entusiasmo e pensaram que se tratava de um dos truques mais antigos que existem na política: o célebre "vamos mudar algo para que tudo continue na mesma". Fossem quais fossem as intenções ocultas por trás desta hemorragia de sinceridade, o certo é que a opinião pública viu-se beneficiada com o acesso ao material que, embora um pouco antiquado, mostrava claramente o à- -vontade com que os Estados Unidos pisaram em muitos casos os direitos dos seus próprios cidadãos enquanto duravam as tensões com o bloco de leste.

Um bom exemplo do que constitui a desconhecida história dos testes nucleares norte-americanos. Na sua sede de Albuquerque, o DOE (Departamento de Energia norte- -americano) armazena 6500 rolos de filme cujo visionamento foi negado durante décadas à opinião pública dos Estados Unidos e que tiveram de esperar até meados da década de 1990 para que perdessem o seu carácter de matéria reservada. Nesses vídeos recolheram-se documentos aterrorizadores que constituem a história secreta do armamento nuclear dos Estados Unidos: um chocante relato gráfico que é hoje particularmente alarmante, já que este tipo de experiências se voltou a efectuar, desta vez patrocinadas por nações do denominado Terceiro Mundo.

Que tem de especial esta documentação para que tenhamos fixado a nossa atenção nela? Muita coisa. Em princípio, não se trata de nada remotamente parecido com aquelas filmagens propagandísticas da guerra fria, em que instavam os cidadãos norte-americanos a ver o átomo como um amigo e o armamento nuclear como a garantia das liberdades democráticas frente à horda vermelha que chegava do outro lado do oceano. Pelo contrário, estas imagens mostram a realidade nua e crua dos testes atómicos. Mostram paisagens e situações nas quais o adjectivo "apocalíptico" deixa de ser uma expressão literária gratuita para recuperar o seu verdadeiro sentido.

Episódios lamentáveis passam, uns atrás dos outros, como a existência de ensaios nucleares na catástrofe - ecológica e humana - provocada pelas detonações levadas a cabo no atol de Bikini, cujas consequências ainda tardaram muitos anos em ser disfarçadas e que causaram a evacuação de praticamente toda a população das ilhas Marshall.

Damas e cavalheiros, bem-vindos ao circo atómico, sem margem para dúvidas, o maior e mais terrível espectáculo do mundo.

"Somos uns filhos da puta" Foram estas as históricas e pouco solenes palavras pronunciadas a 16 de Julho de 1945, às 5 horas, 29 minutos e 45 segundos, pelo doutor Kenneth Bainbridge. Acabava de ser testemunha da primeira explosão nuclear no campo de tiro de Alamogordo (Novo México), concretamente num lugar que tinha o nome adequado de "Jornada do Morto". Ali, a humanidade entrou na denominada "era atómica". Com aquela explosão culminava o Projecto Manhattan, a maior operação militar secreta de todos os tempos. A maior parte do mérito daquele êxito pertencia ao doutor J. Robert Oppenheimer, que tinha conseguido levar a bom porto a empresa de que se tinha encarregado em 1942: fabricar uma bomba atómica antes dos alemães.

Apenas um mês depois deste teste, 200 mil pessoas pereciam queimadas nas cidades japonesas de Hiroxima e Nagasáqui. Foram elas as vítimas imoladas em prol de uma "boa causa" para encurtar a guerra, e que passaram oficialmente à história como as primeiras vítimas do armamento nuclear. No entanto, os primeiros seres humanos que sofreram na carne a dentada da radiação de uma bomba atómica foram na realidade norte-americanos.

Não havia precedentes, assim teve de se improvisar, o que fez com que em Alamogordo se cometessem os primeiros, embora nem por isso menos graves, ensaios nucleares norte-americanos. Por exemplo, a auto-estrada nacional 380, que passava apenas a 15 quilómetros do local da explosão, foi atingida por uma considerável dose de radiação. Uma dose semelhante de radiação abateu-se sobre as propriedades de duas famílias na cidade vizinha de Bingham, as quais não foram nem alertadas nem evacuadas pelas autoridades militares. Até em locais mais distantes se puderam apreciar efeitos da detonação sobre o gado de algumas quintas dos arredores, já que muitos destes animais apresentavam graves queimaduras produzidas pela radiação beta.

Também a segurança não foi o aspecto mais brilhante do Projecto Manhattan. Em 1945, Klaus Fuchs, um físico britânico que participava no projecto, reuniu-se em duas ocasiões com um agente soviético cujo nome de código era Raymond, fornecendo-lhe toda a espécie de informações técnicas sobre o desenrolar da experiência de Alamogordo e lançando a semente do programa nuclear soviético. A sua prisão e posterior confissão seriam o tiro de saída da cruzada anticomunista do senador Joseph McCarthy.

Apesar de todo este acumular de irresponsabilidades, em 1975, o lugar mereceu a designação de monumento histórico nacional, e uma equipa de trabalhadores (que receberam uma gratificação extraordinária por trabalharem ali) ergueram um obelisco comemorativo no local exacto em que teve lugar a explosão.

Expulsos do paraíso Não se tinha passado um ano desde Hiroxima e Nagasáqui quando a marinha de guerra norte-americana começou a interrogar-se até que ponto a nova arma também lhes poderia ser útil. Para dar resposta a essa pergunta, planeou-se a denominada Operação Crossroads.

A data fixada para este novo teste foi o dia 1 de Julho de 1946. Apesar dos horrores de Hiroxima e Nagasáqui ainda serem recentes, o mundo encontrava-se ainda em plena idade da inocência nuclear.

A Operação Crossroads consistia basicamente em comprovar os efeitos que teria uma detonação nuclear sobre uma frota naval. O lugar escolhido para a quarta explosão nuclear da História foi o atol de Bikini, no arquipélago das ilhas Marshall, cenário de uma das mais sangrentas batalhas da guerra do Pacífico. Em Fevereiro de 1946, o comodoro Ben H. Wyatt, governador militar das ilhas, comunicou oficialmente aos seus habitantes que deveriam abandonar temporariamente as suas casas, já que o Governo dos Estados Unidos tinha previsto efectuar ali uma prova nuclear. O seu sacrifício contaria com a gratidão de toda a humanidade, já que esta prova seria uma peça fundamental no futuro desenvolvimento tecnológico e no fim definitivo de todas as guerras. Assim, em Março de 1946, começou o penoso êxodo dos 167 habitantes de Bikini, com o seu rei à cabeça, que foram deportados para outro atol a 200 quilómetros de distância, Rongerik, um lugar muito mais pequeno, com escassos recursos de água e alimentos. Para cúmulo das humilhações, Rongerik era tradicionalmente considerado como um lugar maldito pelos habitantes de Bikini. Tudo isto contribuiu para que os nativos se arrependessem de ter acatado tão docilmente a decisão dos Estados Unidos. Mas já era demasiado tarde.

O certo é que Bikini era o lugar perfeito para aquele objectivo; isolado, deserto (uma vez deportada a população aborígene, claro) e afastado das rotas marítimas habituais. Durante dias espalhou-se pela área circundante uma sinistra frota de barcos fantasma, formada por embarcações de todos os tipos e tamanhos, que se encontravam prestes a serem desmanteladas e que serviam de "alvo", levando a bordo uma tripulação formada por 5400 porcos, ratos, cabras e ovelhas que substituiriam os marinheiros e permitiriam estudar os efeitos da radiação sobre os organismos afectados pela detonação.

O principal resultado daquela experiência foi que os habitantes de Bikini jamais regressaram à sua ilha, convertendo-se no primeiro povo da História a ter sofrido um êxodo nuclear. Hoje em dia, levam uma vida errante, dependendo da hospitalidade de outros povos e sonhando em regressar um dia a um paraíso que já não existe.

O arsenal atómico O ano de 1951 foi quando os Estados Unidos conceberam um arsenal nuclear tal como o entendemos na actualidade, o qual foi testado ao longo de uma série de ensaios colectivamente conhecidos como Buster/Jangle e que decorreram num campo de testes instalado no deserto de Nevada para tal efeito.

Yucca Flat, um antigo território de garimpeiros situado a menos de cem quilómetros a norte de Las Vegas, foi o local escolhido para as sete detonações nucleares que foram executadas enquanto durou o projecto. Nessa altura, cientistas e militares tinham interesses diferentes e os testes tiveram de ser planeados para satisfazer as expectativas de ambos. Os cientistas necessitavam de afinar os aspectos tecnológicos, como o aperfeiçoamento de dispositivos de descarga mais fiáveis, ou encontrar formas de obter uma energia maior com a mesma quantidade de material físsil. Pelo seu lado, os generais precisavam de desenvolver a táctica da guerra nuclear, um estilo de combate inédito que necessitaria de procedimentos próprios. Para desenvolver estas tácticas, efectuaram-se uma série de manobras militares que coincidiam com os testes e em que centenas de soldados foram expostos à radiação das explosões atómicas. A primeira destas desafortunadas unidades foi o 354th Engineer Combat Group, que foi a encarregada de preparar o campo para as primeiras manobras atómicas da História. Se atendermos às circunstâncias históricas não é de estranhar tanta pressa.

No Outono de 1950, a guerra da Coreia encontrava-se no seu apogeu e os Estados Unidos tinham perdido o monopólio nuclear ao ter sido detonado com êxito o primeiro artefacto atómico soviético. A guerra fria era um facto e o fantasma de um apocalipse radioactivo abatia-se sobre o mundo. A única maneira viável para que o arsenal termonuclear não fosse uma ameaça inútil era conseguir que a sua utilização não fosse um sinónimo do fim do mundo, quebrando a doutrina da destruição "mútua assegurada" que mantinha o precário equilíbrio entre as superpotências. Tratava-se de desenvolver armas mais pequenas que fossem susceptíveis de ser utilizadas de modo "seguro" numa batalha real. No entanto, os cientistas não se encontravam ali para testar uma arma, mas sim uma teoria. Concretamente estavam muito mais interessados nos efeitos da radiação sobre os organismos vivos, algo que já tinha começado a ser estudado no atol de Bikini. Desta vez, a novidade era que as centenas de animais que deram as suas vidas pelo progresso atómico foram piedosamente anestesiados, antes de serem expostos aos efeitos da explosão e mais tarde dissecados. Claro que, se na verdade queriam conhecer os efeitos da radiação sobre o corpo humano, podiam ter recorrido aos 75 mil doentes de cancro da tiróide devido, segundo o Instituto Nacional do Cancro, às provas nucleares de Nevada ou às vítimas do aumento de 40% dos casos de leucemia infantil que aconteceram no vizinho Estado de Utah entre 1951 e 1958.

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