A velha rainha, o jovem indiano, a corte dela e o exotismo dele
Recordemos Bette Davis sentada no trono, com uma tez extremamente pálida e vestes faustosas, em Isabel de Inglaterra (1939), de Michael Curtiz, ou Helen Mirren, a expor a fragilidade de Isabel II em A Rainha (2006), de Stephen Frears, numa interpretação que lhe valeu o Óscar. Fiquemo-nos por estes modelos de grandes atrizes que representaram a monarquia britânica na história do cinema. Uma história que continua a fazer-se, como comprova o filme que chega hoje às salas portuguesas, encontrando ainda rostos que sustentam uma certa simbologia da nobreza clássica de Hollywood... se quisermos pôr nestes termos.
Com Vitória e Abdul, Frears regressa à dinâmica dos aposentos reais e à vertente do poder no feminino, desta vez para auscultar a humanidade da rainha Vitória, através do semblante carregado e justíssimo de Judi Dench. Ela que também repete a dose exatamente 20 anos depois de Sua Majestade, Mrs. Brown (1997), de John Madden, onde já interpretava a monarca, no quadro de outra relação pouco convencional com um servente escocês. Esta é uma memória, convém dizer, que chega a ser integrada no argumento do novo filme, por exemplo, quando a rainha confessa que sente a falta desse John Brown, ou numa conversa de vão de escada em que se ouve o comentário: "He"s the brown John Brown."
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De quem falam as más-línguas? De Abdul Karim, o funcionário indiano que foi enviado a Inglaterra, em 1887, para entregar uma moeda cerimonial à rainha no banquete do Jubileu de Ouro, e que caiu nas suas boas graças. O protocolo não permitia que este tivesse contacto visual com a então imperatriz da Índia, mas o jovem não se conteve, e pode dizer-se que a audácia valeu a pena... Desde o momento em que lhe beijou os pés em frente a uma perplexa audiência aristocrata, até à repetição desse gesto reverente no leito de morte, Abdul foi o predileto de Vitória, o seu contador de histórias pessoal e, sobretudo, o seu munshi (professor). Com ele aprendeu urdu, conheceu ensinamentos do Corão, ouviu falar do encanto do Taj Mahal e de uma fruta chamada manga. Ele trouxe ao crepúsculo da vida da monarca um ânimo renovado, quebrou a monotonia burocrática dos seus dias, e deu azo a um crescente burburinho na corte.
Toda a primeira parte do filme explora o humor da situação, os absurdos da etiqueta, a própria performance dos corpos rígidos no ambiente da casa real. E nesse am- biente, Vitória e Abdul destacam-se pela leveza de uma sabedoria secreta, um pacto gentil que ninguém compreende, apesar de todos andarem a escutar atrás da porta as audiências privadas do par. Não se sabe muito bem quem é este Abdul (interpretado pelo ator de Bolly-wood Ali Fazal), mas percebemos que a sua beleza física é acompanhada de um entusiasmo contagiante, a que a rainha não resiste e faz questão de partilhar.
Essencialmente factos reais
A história de Vitória e Abdul é verídica, e chega-nos pela adaptação do livro homónimo de Shrabani Basu. Mas Stephen Frears procura ser o mais justo possível na aceção da veracidade. Logo nos créditos de abertura somos advertidos de que o que se vai seguir é "baseado em factos reais... essencialmente". Ora esta abordagem lança um apetite diferente: não é o rigor, muitas vezes enfadonho, dos eventos que move o cineasta, mas a fantasia que se pode extrair deles.
Talvez na vida real esta narrativa não fosse (não foi, certamente) tão brilhante como aqui aparenta, e, mais certo ainda, a rainha Vitória não seria tão progressista como o retrato que nos é transmitido. No entanto, cumpre ao cinema aplicar a luz certa sobre uma realidade. Neste caso, uma luz que, através da recriação histórica romantizada, mas também crua, faz refletir a contemporaneidade. De resto, Frears sabe muito bem ministrar o tom a cada momento, com a já evidenciada destreza do especialista em duplas peculiares.
Judi Dench, que trabalhou com o realizador em Mrs. Henderson (2005) e Filomena (2013), é absolutamente maravilhosa na composição da sua personagem. As atenções voltam-se todas para esta octogenária de corpo volumoso e irrequietos olhos azuis, que faz girar um elenco inteiro à sua volta, num nervosismo delicioso. E o mais fascinante é que, nós espectadores, não estamos à procura da verdadeira rainha Vitória na sua performance, do temperamento dessa mulher que viveu no século XIX. Mas sim da rainha Vitória de Dench, com uma presença ao mesmo tempo genuína e carismática. Ela move-se entre a luminosidade e a amargura com uma ligeireza tremenda, e contamina o filme com essa sabedoria que vem da pele, da expressão, da postura.
Sem querer apressar a época, parece que já se ouve uma voz a anunciar: "... and the Oscar goes to... Judi Dench!". Merece.