A última cartada
Um dia depois do anúncio da prorrogação dos Comuns por cinco semanas, o ministro da defesa Ben Wallace foi apanhado por uma televisão num assomo de honestidade. Dizia ele, entre uma ou outra risada, que o governo sabe que sem maioria não consegue controlar o rumo dos acontecimentos e que o sistema não funciona por via disso. Entretanto repreendido, Wallace trouxe a matemática para a política, expondo a verdadeira intenção de Boris Johnson: forçar eleições quanto antes, aproveitando o calendário para tirar os últimos proveitos para a campanha. Quais são eles? Atribuir todas as responsabilidades de uma saída desordenada à intransigência de Bruxelas, agora que vestiu a pele de conciliador por um acordo; e expor uma coligação de partidos da oposição e de deputados conservadores, todos contrários à saída sem acordo, liderada pelo mal-amado Jeremy Corbyn.
Com a primeira, alcança o último argumento para ir a eleições com uma mensagem clara por um não acordo, secando a mensagem ao partido do Brexit (vencedor das europeias) e conquistando um mandato para o levar a cabo, coisa que manifestamente não resulta do referendo de 2016. Com a segunda, obriga os rebeldes conservadores a assumirem o apoio a Corbyn ou a lealdade ao governo, além de forçar os vários partidos da oposição a diluírem as suas distintas posições sobre o Brexit (saída com este acordo, saída com outro acordo, permanência, novo referendo, eleições) numa plataforma eleitoralmente mais homogénea, descaracterizando-os. À frente nas sondagens desde que tomou posse e com os unionistas do DUP já garantidos para assegurar uma maioria em caso de necessidade, Johnson não fez mais do que ser igual a si próprio: a tática para salvação da sua pele, acima de tudo o resto.
A novidade política não está aqui. Quantos políticos, tantas e tantas vezes, não repetem o raciocínio, umas vezes com sucesso, outros fracassando com estrondo. De certa forma, como diz Wallace, a falta de uma maioria conservadora não dá ao governo o controlo da iniciativa política, o que significa que era preciso usar um mecanismo legal, encaixado nas tradições constitucionais britânicas, para inverter a força parlamentar e dar ao executivo a margem suficiente para liderar a agenda. A novidade, mais uma vez, não está no reset aos trabalhos parlamentares antes da apresentação do programa de governo para a nova legislatura, lido pela rainha. Esse interregno acontece habitualmente de forma curta (uma, duas semanas), sem paralisar os serviços mínimos. A novidade da cartada de Boris Johnson - a que a rainha nunca se oporia - está nos 35 dias de autêntico shutdown parlamentar, num contexto de contagem decrescente sobre uma decisão crítica ao futuro do Reino Unido, com negociações entre Londres e Bruxelas até ao Conselho Europeu (17/18 outubro) e três congressos partidários agendados pelo meio (trabalhistas, conservadores e liberais-democratas).
Mesmo que se conceda que o risco assumido pelo primeiro-ministro tem, do seu ponto de vista, cabimento, não deixa de ser uma provocação institucional consciente, quando a legitimidade política de Boris Johnson vem única e exclusivamente dos Comuns. Um dos corolários deste despeito institucional acaba por mostrar, de forma transparente, quão frágil foi o processo de legitimação do atual primeiro-ministro, eleito por uma minoria partidária em circuito fechado. Ao contrário daqueles que vieram de imediato defender o método como suficiente e respeitador do parlamentarismo britânico - hoje, vemos como Johnson o respeita -, levantei na altura um outro argumento, sem pôr em causa a repetição da prática noutras ocasiões: a fórmula e a legitimidade eram politicamente muito inconsistentes para a ação exigida a Johnson num momento tão existencial para o Reino Unido. Ao esvaziar e encurralar Westminster por cinco semanas, Johnson reconhece que só em legislativas terá força para o cargo e para o diálogo com Bruxelas.
A grande questão está em saber para quando as marcará: se antes de 31 outubro, negociada uma curta nova extensão do prazo para o efeito, que me parece pacificamente aceite pelos 27; ou imediatamente depois, culpando como foi dito Bruxelas pelo fim do prazo sem um acordo, ou as oposições por não terem aprovado um hipotético novo tratado de retirada que, de forma pouco provável, pode ainda resultar do Conselho Europeu de meados de outubro. Qualquer destas situações é suscetível de capitalização eleitoral - o que mais importa a Boris Johnson. O que menos lhe tira o sono é a subida do nível de agressividade política e social em que mergulhou o Reino Unido, o enfraquecimento das instituições, o descrédito da classe política ou os danos infligidos à economia e à estabilidade constitucional das ilhas.
Boris joga tudo isto com visível deleite, pura diversão, deslumbramento por poder praticar uma espécie de permanente pândega política com que entreteve os seus leitores durante anos. Pode ser, de facto, que o risco o compense, sem manifesta compensação para o seu país. Só que, no meio de tudo isto, Johnson conseguiu também fazer de todos os deputados que se opõem à saída sem acordo uma frente aparentemente coesa pela defesa da democracia parlamentar e pela soberania dos Comuns. Isso pode não ter, necessariamente, uma correspondência na votação desses partidos, mas marca uma diferença clara numa democracia que já foi exemplo. Gostava de acreditar que, no final do dia, os eleitores escolherão em função do que é estrutural e não circunstancial, como as cambalhotas e jogadas de Boris Johnson. A ver pelo que aconteceu nas europeias, é provável que a realidade seja bem diferente.
Investigador universitário