"A UE continua a ser o fundamento da política alemã"

Presidente da Alemanha faz agora um ano, Frank-Walter Steinmeier inicia hoje uma visita a Portugal que inclui passagens por Lisboa e pelo Porto, com os habituais encontros com o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e o primeiro-ministro António Costa, mas também, no âmbito de uma agenda preenchidíssima, com uma ida à Fundação Champalimaud e outra à Universidade do Porto. Deu em conjunto ao DN e ao JN esta entrevista, na qual fala do potencial das relações bilaterais, reafirma o compromisso alemão com o projeto de construção europeia e, apesar das críticas em tempos a Donald Trump, defende a importância vital da parceria com os Estados Unidos. Os refugiados e a forma como na Alemanha se leva até ao fim a procura de consensos políticos são outros temas desta entrevista por escrito a um governante que amanhã será entronizado como membro da Confraria do Vinho do Porto, após um almoço no Palácio da Bolsa oferecido pelo presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira. Em Lisboa, dentro de horas, está previsto um passeio de elétrico da Basílica da Estrela até à Praça da Figueira.
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O PIB português cresceu 2,7% no ano passado, até um pouco mais do que o alemão. Que comentário lhe merece a evolução da economia portuguesa nos últimos anos, depois dos tempos difíceis que levaram ao programa de assistência financeira?

Que a economia portuguesa esteja novamente a registar um crescimento vigoroso é uma boa notícia, para Portugal e para toda a Europa. Estou particularmente feliz que isso se esteja a refletir também na criação de novos postos de trabalho. Portugal passou por uma dura fase de ajustamento que trouxe, para muitas pessoas, insegurança e cortes drásticos. Mas os portugueses, com o apoio dos seus parceiros europeus, conseguiram ultrapassar esta crise. Isso representa um sucesso enorme e tenho grande respeito por aquilo que as pessoas no seu país alcançaram. Contudo, as nossas economias continuam em processo de transformação. Temos de aproveitar as oportunidades da digitalização e configurá-la o melhor possível a nível social, político, económico e tecnológico. Não podemos portanto descansar sobre os louros conquistados - nem em Portugal, nem na Alemanha, nem em qualquer outro país da Europa. É também por este motivo que os investimentos na Europa têm de aumentar.

São 400 as empresas alemãs em Portugal e cerca de 50 mil os postos de trabalho por estas criados. Um dos propósitos da visita é aprofundar essa vertente económica das relações bilaterais? Em que outras áreas é possível aprofundar a cooperação luso-alemã?

Aceitei, com muito gosto, o convite do Presidente Rebelo de Sousa por vários motivos: devido à estreita cooperação económica entre Portugal e a Alema-nha, devido às relações políticas particularmente boas e próximas que mantemos e devido ao elevado número de contactos pessoais. Quero expressar o meu reconhecimento por esta proximidade, estes elos de ligação entre os nossos países e os seus habitantes, e também contribuir para a sua intensificação. Além de conduzir conversações políticas, irei visitar centros de investigação e tecnologia de ponta em Portugal. Cientistas e engenheiros de ambos os países trabalham em estreita cooperação em muitas universidades e instituições de investigação. Esta forma de cooperação orientada para o futuro mostra que Portugal tem um grande potencial. Irá igualmente traduzir-se em novos desenvolvimentos, como por exemplo na medicina ou em produtos especializados de alta tecnologia e, em particular, em novos postos de trabalho. Estou também contente por me sobrar algum tempo para descobrir a beleza e a cultura de Lisboa e do Porto, inclusive as suas especialidades culinárias.

É visto como o principal dinamizador das conversações entre a CDU-CSU e o SPD, que levaram a que se tivesse chegado a um esboço de um acordo de governo depois dos resultados inconclusivos de 24 de setembro de 2017. A Alemanha já tem uma tradição de governos baseados em coligações, até grandes coligações como a atual. Crê que é o sistema que funciona melhor, enquanto exemplo de pluralidade, ou acha que era preferível um executivo de maioria absoluta?

A Alemanha encontra-se numa situação especial: o processo de formação de um novo governo está a demorar mais do que aquilo a que nos acostumámos nos passados 70 anos. Como presidente federal, a minha tarefa neste contexto é velar para que a Constituição seja respeitada. E a Lei Fundamental Alemã prevê que todas as possibilidades de formação de governo sejam esgotadas antes de recorrer a opções como um governo minoritário ou novas eleições. Foi precisamente neste sentido que eu intervim - independentemente de se formar ou não uma coligação ou da possível configuração desta. Na Alemanha não temos um sistema eleitoral puramente maioritário. O sistema eleitoral alemão foi concebido de forma a que a composição do parlamento reflita com a maior exatidão possível as proporções dos resultados eleitorais. A estrutura institucional alemã, estabelecida pela nossa constituição, tem provas dadas. Nas décadas passadas tivemos as mais variadas coligações governamentais e, regra geral, funcionaram todas bem. Os partidos da coligação conseguiram sempre chegar a compromissos e, desta forma, puderam representar um leque mais amplo de opiniões do que teria sido o caso com a implementação de um programa de um único partido. Mas a paisagem política - à semelhança do que acontece noutros países da Europa - está a mudar também na Alemanha. Apareceram novas forças políticas, outras perderam importância e os partidos tradicionais já não suscitam a mesma lealdade. Temos de lidar com isso a nível político e social. Mas sei que existem outros sistemas e tradições eleitorais com igual legitimidade democrática, como por exemplo o sistema maioritário na Grã-Bretanha. É um sistema que também pode funcionar bem e terá de ser avaliado no contexto das experiências nacionais. O sistema eleitoral alemão e as regras da formação de governo são também expressão de experiências especificamente alemãs. No final de contas, a resiliência de um sistema só se revela quando este é posto à prova - por representantes de posições radicais, por exemplo.

A ascensão de partidos e movimentos e populistas tem sido uma realidade na Alemanha e na Europa em geral. Quais julga serem as razões para o fenómeno? E quais as consequências?

Com a globalização e a digitalização, as nossas sociedades modernas estão a passar por transformações invulgarmente rápidas e profundas. As disparidades entre os nossos contextos de vida - entre jovens e idosos, cidade e campo, rico e pobre - estão a aumentar, tal como a insegurança social. A migração e o acolhimento de refugiados tornam as nossas sociedades mais diversificadas, mas representam também um desafio político e social. A isto acresce o facto de o discurso político se ter alterado dramaticamente devido às redes sociais, onde o tom é frequentemente áspero e malicioso. Muitas pessoas reagem a isto isolando-se e refugiando-se em posições nacionalistas. Isto explica o sucesso de forças políticas que oferecem esta estratégia como solução supostamente simples. E mostra que a luta pela solução certa e pela democracia tem de ser travada de forma contínua. Além disso, a política encontra-se perante a tarefa de encontrar e oferecer soluções o mais concretas possíveis para os desafios e os problemas existentes num mundo cada vez mais complexo. Em qualquer caso, seja onde for que apareçam novos nacionalismos, que são repressivos a nível interno e que conduzem a novos antagonismos na Europa, importa opormo-nos de forma inequívoca e defendermos a democracia e o primado do direito, assim como a unidade da Europa.

Sendo a saída do Reino Unido da União Europeia quase uma inevitabilidade, como imagina o futuro da União Europeia pós-brexit e qual pensa que será o papel da Alemanha?

A UE vai perder um membro importante com a saída do Reino Unido. E embora eu não possa alterar a situação, pessoalmente lamento muito o brexit. A UE tem agora de salvaguardar e, acima de tudo, reforçar a coesão dos seus 27 Estados membros. Mas parece-me também importante que a União Europeia não se ocupe agora exclusivamente de si própria e das suas estruturas e particularidades institucionais. O mundo à nossa volta está em movimento. Não deveríamos partir do princípio de que outros irão defender a nossa paz, a nossa liberdade e a nossa prosperidade. Nós, europeus, temos nós próprios de nos empenhar em prol da prevenção e da resolução pacífica de conflitos e de uma ordem internacional justa e baseada em regras. Contudo, o futuro da UE vai também depender de até que ponto somos hoje capazes de manter vivos os valores da integração europeia depois de duas guerras mundiais devastadoras, e de comunicar às pessoas uma visão desta Europa unida enquanto local de modelos de vida diversos e de boas oportunidades para o futuro. Para a Alemanha, a União Europeia continua a ser o fundamento da nossa política. Isso também se reflete no acordo de coligação, sobre o qual tanto se fala na Alemanha atualmente.

Classificou Donald Trump, antes ainda de ele e o senhor serem presidentes, como "um pregador de ódio". Hoje, conhecendo-se já o desempenho do primeiro ano de Trump na Casa Branca, qual considera ser a melhor estratégia para se manter uma relação sólida entre a Europa e os Estados Unidos?

Na altura, o que estava em causa era uma campanha eleitoral nos EUA que eu, na minha função anterior, achei inquietante. E não era o único. Hoje, o que é decisivo para nós é que o presidente Trump é o presidente democraticamente eleito dos Estados Unidos. Os EUA continuam a ser um parceiro extremamente importante, tanto para a Alemanha como para Portugal, e o garante da segurança europeia. Estamos ligados por laços muito estreitos, seja a nível histórico, político, económico ou da sociedade civil. Cooperamos de forma intensiva e diária em quase todos os temas. Nos casos em que isso não é possível, a União Europeia tem de estar disposta a assumir mais responsabilidade. E parece-me natural que nos associemos àqueles que, tal como a União Europeia, valorizam um sistema internacional baseado em regras - desde o combate às alterações climáticas e a Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável até ao comércio livre.

Uma última pergunta, de carácter mais pessoal. A sua mãe fez parte dos refugiados alemães que tiveram de deixar os territórios perdidos a leste a seguir à II Guerra Mundial. Como vê o drama dos refugiados hoje e a forma como a Europa lida com as massas que procuram nela recomeçar a vida?

Não ficar indiferente perante o sofrimento de outros é o que faz de nós seres humanos. Há poucas semanas visitei novamente um campo de refugiados na Jordânia, e também na Alemanha falo frequentemente com refugiados, que me relatam as duras experiências por que passaram. Tenho muito orgulho na forma como o nosso país e centenas de milhares de cidadãs e cidadãos alemães se empenharam e ainda se empenham pessoalmente para oferecer refúgio e facilitar a chegada e a integração, minorando assim o sofrimento. Desejo vivamente que este empenho humanitário por parte dos meus conterrâneos se mantenha. Quem age no domínio político tem também de ter consciência das limitações das suas possibilidades. Para atender às necessidades daqueles que fugiram de perseguições políticas, guerras ou guerras civis, temos de diferenciar: vítimas de perseguição política têm direito a asilo ou proteção nos termos da Convenção de Genebra. Refugiados de guerras civis podem também beneficiar de proteção. Mas a busca por uma vida melhor a nível económico - por mais justificada que seja - não confere o mesmo direito a acolhimento na Alemanha ou nos outros países da União Europeia. A melhor forma de ajudarmos estas pessoas é fazermos mais para fomentar o desenvolvimento económico nos seus países de origem, proporcionando-lhes melhores perspetivas de futuro. Este foi um tema importante nas minhas viagens ao Gana e à Gâmbia em dezembro de 2017. E tive a clara impressão de que os governos nacionais também tinham grande interesse em melhorar a situação das pessoas nos seus países.

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