A Ucrânia e os fundamentos da segurança europeia
A Europa tem uma estrutura de segurança como nenhuma outra, incorporada numa intrincada teia de tratados, regras e instituições. Apesar da sua sofisticação, a ordem de segurança europeia não é um produto acabado, mas que está em constante revisão.
As estruturas de segurança da Europa foram construídas gradualmente, ao longo de várias décadas. As bases foram lançadas na Conferência de Yalta de 1945, onde o presidente dos EUA Franklin D. Roosevelt, o primeiro-ministro britânico Winston Churchill e o líder soviético Joseph Estaline reorganizaram a Europa dividindo a região em esferas de influência, colocando a postura de segurança da Europa num patamar mais estável e previsível.
Três décadas depois, em 1975, a Cimeira de Helsínquia da Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa ajudou a aliviar as tensões da Guerra Fria. Na década de 1990, a Conferência foi institucionalizada como Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE).
Apesar desses acordos vitais, a queda da União Soviética abalou a Europa no seu âmago. O último líder soviético, Mikhail Gorbachev, estava ciente das mudanças que a Rússia enfrentaria nas próximas décadas. "Vivemos num mundo novo", declarou no discurso que dissolveu oficialmente a União Soviética em 25 de dezembro de 1991. Entre 1989 e 1991, o Kremlin perdeu o controlo de uma extensão de território maior do que a União Europeia.
No "novo mundo" a que Gorbachev se referiu, uma parte desse território perdido ocupou uma posição singular nos corações e mentes dos líderes russos: a Ucrânia. Yevgeny Primakov, que era ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia quando eu, como secretário-geral da NATO, negociei o acordo que permitiu a primeira expansão da Aliança após o fim da Guerra Fria, repetia-me muitas vezes: "A Ucrânia está no meu coração."
O ato fundador das relações mútuas entre a Aliança e a Rússia foi assinado em maio de 1997. Na cimeira da NATO em Madrid, cerca de seis semanas depois, a Hungria, a Polónia e a República Checa foram convidadas a aderir. Quanto à Ucrânia, assinou a Carta sobre uma Parceria Distinta com a NATO. Não ingressaria na Aliança, mas tornar-se-ia um interlocutor privilegiado com o Ocidente.
Afinal, a Ucrânia também é vital para a segurança europeia. Na época dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, eu estava na Crimeia numa cimeira da União Europeia com o então presidente ucraniano Leonid Kuchma. Com a trágica notícia, o mundo solidarizou-se com os Estados Unidos, mas a Ucrânia permaneceu no topo da agenda de segurança europeia.
Novas ameaças surgiram no início do século XXI e, com o passar do tempo, a Rússia ficou cada vez mais desconfortável com a ordem pós-Guerra Fria, liderada por uns EUA hegemónicos. Como o presidente russo Vladimir Putin declarou na Conferência de Segurança de Munique de 2007, "o modelo unipolar não é apenas inaceitável, mas também impossível no mundo de hoje".
O rearranjo do espaço pós-soviético foi particularmente disruptivo para a política externa russa, que tem uma conceção territorial de poder. A redução progressiva do tampão territorial da Rússia - formado por países sobre os quais exerceu uma poderosa influência ou o controlo total - deixou o Kremlin a sentir-se encurralado. Nesse cenário, a perspetiva de perder a Ucrânia é ainda mais inaceitável do que uma ordem mundial unipolar, o que explica a colocação maciça de tropas da Rússia ao longo da extensa fronteira entre os dois países. A Rússia não parece preparada para tentar anexar toda a Ucrânia. No entanto, o Kremlin está claramente comprometido em manter a Ucrânia dentro da sua esfera de influência.
Uma parte fundamental da ordem de segurança europeia são os seus princípios fundadores, e a anexação ilegal da Crimeia pela Rússia em 2014 violou-os claramente, particularmente, o respeito pela integridade territorial dos Estados. Infelizmente, a atual situação tensa ao longo da fronteira ucraniana coloca em risco a estabilidade na Ucrânia e, portanto, a segurança na Europa.
Esforços para alcançar uma solução diplomática para a crise são claramente urgentes, e muitos foram empreendidos nas últimas semanas. Mas, embora a Rússia esteja envolvida em conversações de segurança com os EUA e a NATO e a participar em reuniões dentro da estrutura da OSCE, as negociações parecem estar num impasse.
A UE deve apoiar outros esforços para alcançar uma solução diplomática para a crise atual, como o chamado formato Normandia, um grupo de contacto informal composto por França, Alemanha, Rússia e Ucrânia, criado em 2014 para resolver a crise no leste da Ucrânia na região de Donbas.
Mas mesmo à medida que este processo avança, a UE deve assegurar que a sua voz é ouvida e que está representada de forma adequada nestas negociações. Como salientou com razão o alto representante da UE para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, Josep Borrell, a União "não pode ser um espectador neutro" nas conversações sobre questões que afetam diretamente a segurança europeia. Dado o compromisso declarado do presidente dos EUA, Joe Biden, com o princípio de "nada de decisões sobre vós sem vos ouvir", parece que o sentimento de Borrell é partilhado do outro lado do Atlântico.
Para lá dos princípios estão as considerações práticas. A UE mudou profundamente desde a construção da arquitetura de segurança europeia pós-Guerra Fria. Ela alargou de 12 para 27 membros, tornando-se o maior bloco comercial do mundo. E, com a Política Externa e de Segurança Comum Europeia, acumulou todas as ferramentas de uma política externa eficiente. Agora, basta aplicá-las.
Gorbachev disse no final da Guerra Fria que o mundo tinha mudado. A Europa também mudou e, para manter o seu compromisso com a paz, a arquitetura de segurança europeia terá de refletir essa nova realidade.
Javier Solana, ex-alto representante da UE para as Relações Externas e Política de Segurança, secretário-geral da NATO e ministro dos Negócios Estrangeiros de Espanha, é presidente do EsadeGeo - Centro para a Economia Global e Geopolítica e membro ilustre da Brookings Institution.
© Project Syndicate, 2022