A Turquia é como uma janela… a partir de 'Janus'! 

Os interesses turcos em vésperas de a república fundada por Ataturk celebrar um século abrangem muitos dos territórios que em tempos pertenceram ao Império Otomano. E se o presidente Erdogan consegue assim uma influência internacional impressionante, também tem de lidar com desafios novos e diferentes muitas vezes a um ritmo hiperacelerado.
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Há 100 anos o Diário de Notícias noticiava a passagem pela Suíça do "importante Senhor Tchitcherine", Comissário dos Negócios Estrangeiros da Rússia dos soviets, como se dizia na altura. Este périplo europeu daquele que seria o equivalente hoje a Sergey Lavrov, radicava na "Questão dos Estreitos" (Dardanelos e Bósforo), que a União Soviética não queria que tivesse controlo exclusivo dos Aliados Ocidentais vencedores da Grande Guerra.

Estes "Aliados Ocidentais", podem resumir-se à Inglaterra, a "muleta otomana" ao longo de todo o século XIX. Dos cinco grandes impérios europeus, Inglaterra, França, Rússia e Áustria, o Otomano, sempre fora o elo mais fraco e sempre contou com os "remendos" e apoios britânicos perante as suas falhas e para o não deixar cair, mantendo assim os equilíbrios. Os britânicos aguentaram os alicerces do Império Otomano até onde puderam, pois dada a sua vastidão, tinham uma vaga ideia sobre o complexo que seria uma reorganização política e social deste elo mais fraco.

Império de vistas largas, desde Oran na Argélia até ao Qatar, no Golfo Pérsico, no Mediterrâneo só não controlava o Estreito de Gibraltar. A norte chegou a ocupar todo o território europeu agora em guerra, ultrapassando-o até Viena. "Todas as jugoslávias" têm sangue turco e de um dia para o outro, tudo implodiu.

O trauma maior, dentro da dimensão geográfica deste sismo político, concentrou-se no que equivale hoje à atual Turquia. Porquê? Porque o "novo pai dos turcos", Mustafá Kemal Ataturk entrou numa espiral reformista secularizantemente ocidentalizadora, que significava modernista e modernizadora e só possível ser feita num mundo pré-Twitter. De um dia para o outro os "novos turcos" tiveram que mudar de nome, mudar de roupa, passar a assinar e escrever com o alfabeto latino, localidades mudaram de nome, todo o sistema de ensino foi refeito de acordo com o novo objetivo nacional, bem como a moeda, pesos e medidas também. Tudo a bem da modernização de uma sociedade, um Império cujo orientalismo remetia as mentes ocidentais para um Império medieval, preso no tempo.

Esta perceção Ocidental, sobre o atraso turco, foi percecionada por Ataturk, o qual viveu o período certo para exigir, concretizar e proporcionar uma monumental "cambalhota político-social" em pouco mais de 30 anos. O primeiro presidente desta nova Turquia, lançou a esteira da secularização, soube potenciá-la e concretizou-a.

O momento atual é do 12.º presidente de uma Turquia em permanente mutação. De tal forma, que Recep Tayyip Erdogan, percebeu o sopro da História e conjugou-o com a memória coletiva do período de troca de calças e de nomes. Percebeu que os homens queriam Deus, mas que o poder militar perseguia quem ia rezar. É neste mal-entendido que a CEE/União Europeia alimenta uma "pescadinha-de-rabo-na-boca" perante o impasse, a qual foi crescendo ao longo dos anos, a "pescadinha"! Antes disso, entender que o percurso secularizante do regime militar liderado por Ataturk, ultrapassou-o em vida e os turcos urbanos viviam fascinados com a Europa Ocidental, vendo nesta um bloco a integrar, perante a bipolaridade sistémica. A Turquia integra o Conselho da Europa em 1950 (e a NATO em 1952) e começa a criar uma inevitabilidade mental das elites para o povo, a solução encontra-se numa adesão à CEE, a Comunidade Económica Europeia. O pedido formal de adesão apenas acontece em 1987, mas apenas elegível em 1999. Ou seja, a Turquia esteve 12 anos como candidata a candidata, processo humilhante aos olhos turcos e argumento em discursos políticos, enquanto justificativo sobre a necessidade de virar definitivamente as costas à Europa.

Em 1994 o atual 12.º presidente foi eleito presidente da Câmara de Istambul (antiga Constantinopla), dispensado do cargo em 1997 e sentenciado a 10 meses de prisão, dos quais cumpriu quatro. Fundou o Partido da Justiça e do Desenvolvimento em 2001, de cariz islamista e cujo acrónimo PJD, em turco fica AKA, que significa "Branco". O AKAParty, imaculado porque sem passado, varreu a Turquia com a mensagem do fim do mal-entendido que a CEE/EU capitalizou em "pescadinha" e que se baseava no seguinte registo. A CEE/EU sempre invocou uma sociedade turca demasiado religiosa, demasiado praticante, nas suas avaliações do candidato a candidato. Os militares, ao longo da década de 1990 passaram a ter nova missão, bater em quem ia rezar impedindo-os de o fazer, em tentativa desesperada para fazer reduzir o número de praticantes. A "pescadinha-de-rabo-na-boca" acontece quando a avaliação europeia invocou então a violação de Direitos Humanos pelos militares, face a uma liberdade religiosa não existente.

Erdogan viveu toda esta frustração esquizofrénica já político adulto e decide aquilo que todo o desiludido com o(s) sonho(s) (no caso o europeu) geralmente decide. Um regresso às origens, à falta de outras referências. A verdade é que o PJD é de 2001 e nas eleições de 2002, conseguiram 34% dos votos e formaram governo. O que significa que a mensagem do "sejamos nós próprios, que os outros não sabem nada" passou, o que confirmou ao primeiro-ministro Erdogan, de 2003 a 2014, que o efeito boomerang do longo período secularizador lhe poderiam alavancar o discurso, a pose e a ação. Neste período 2003/14 Erdogan tratou pessoalmente do dossiê do candidato Turquia à União Europeia e fez avanços baseado na "Visão 2023", com um plano de recuperação económica e negociações com o PKK, o Partido dos Trabalhadores Curdos.

Aquando da Primavera Árabe e do investimento feito pelo regime na tentativa de "reganhar" influência em territórios com ligação ao antigo Império Otomano, deu a sensação aos europeus que a Turquia teria mudado de sonho e regressara ao império. À época, 2011, Erdogan fazia dupla com Ahmet Davutoglu enquanto ministro dos Negócios Estrangeiros (2009-2014). Este professor de História, profundo conhecedor do império e da "Política de Problema Zero", que adiava o adiável e resolvia o possível, esclareceu o mundo através de uma entrevista à Al-Jazeera, onde lhe fora perguntado se a Turquia estava ou não a dar sinais de afastamento da Europa. "Repare, a nossa posição será sempre a de Janus (enquanto fazia a águia bicéfala com ambas as mãos à frente da cara), com um olhar a Oriente (enquanto mexe uma mão) e o outro a Ocidente (enquanto mexe a outra)". Problema zero, a Europa mantém as portas fechadas? Há outras a abrirem-se!

A oportunidade europeia aí está de novo, com a guerra da Ucrânia e a Turquia a mediar e com trunfos na mão.

A Primavera Árabe ainda não acabou para a Turquia, com guerras suspensas na Síria e na Líbia, que fazem a política externa turca trocar de tabuleiro várias vezes por dia.

Concentrada ultimamente na mediação ucraniana, nos cereais e nos portos, continua a controlar aquilo que o "importante Senhor Tchitcherine", Comissário dos Negócios Estrangeiros da Rússia dos soviets não queria há 100 anos, o controlo dos estreitos, Bósforo e Dardanelos.

A Turquia continua a ter a Rússia nas mãos, na questão do Mar Negro. No mês passado voltou a intervir na Síria em retaliação ao último atentado em Istambul. E a "Batalha por Kobane", em setembro/outubro de 2014, quando o Estado Islâmico estava prestes a conquistar uma larga extensão fronteiriça turco-síria, a Turquia foi obrigada a intervir, não porque não quisesse fronteira com islamistas, mas não queria absolutamente com curdos! O PYD (Partido da União Democrática, a versão síria do Partido dos Trabalhadores Curdos na Turquia, o PKK), apoiados pelos americanos, caso derrotassem o Estado Islâmico, conseguiriam uma consolidação territorial (Afrin/Kobane/Kameshli, cerca de 900 km) que os poderia fazer sonhar com a constituição da Rojava, uma Região Autónoma, um Curdistão Sírio, que pretende seguir os passos da autonomia do Curdistão iraquiano, Região Autónoma face a Bagdad desde 1991.

A Turquia vai continuar a jogar neste tabuleiro a gosto, já que a questão curda é inegociável para Ancara.

A novidade mais recente, é uma ameaça de invasão a ilhas gregas (Rodes e Lesbos) por se estarem a militarizar. Não confundir com uma ameaça à UE, ou qualquer retaliação, é antes um regresso ao império e "Constantinopla" (na realidade a atual capital é Ancara) exige a desmilitarização de vários territórios marítimos que disputa há décadas com a Grécia.

Da mesma forma que a sua presença na Líbia não significa que se está a virar para África, mas antes para o império, que no caso líbio servirá certamente como plataforma de projeção de força para consolidação mediterrânica e acesso à África profunda subsariana, mercados não tradicionais, mais comércio, mais influência.

Um expansionismo normal e por isso importa ter lideranças a gosto. Islamista de base, o PJD viu as simpatias das Irmandades Muçulmanas deste mundo e em conluio com esta "internacional" tentaram moldar os regimes pós-Primavera Árabe, no preciso momento em que o Hamas era poder da Palestina.

Alavancados no momento e na mágoa que a bandeira da Palestina representa, cavalgaram democraticamente Marrocos, Tunísia, Líbia e Egipto e encontraram de novo a resistência da Europa e do restante Ocidente, que tudo fizeram, até golpes não considerados enquanto tal, para o modelo islamista não passar em países tão próximos e suscetiveis da influência europeia.

A Turquia é atualmente mais do que a Janus do ex-MNE Davutoglu, que também foi primeiro-ministro (2014-16). A Turquia quando atravessa a estrada não olha só para a direita e para a esquerda, mas também para cima e para baixo, tal é o seu lastro histórico e as suas ambições presentes e futuras.

dnot@dn.pt

* Politólogo/Arabista
www.maghreb-machrek.pt (em reparação)

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