A "Tourada" que fazia (e faz) falta
Olá" e "Olé", uma "faena" ao Estado Novo
Com estes pseudónimos, Ary dos Santos e Fernando Tordo, respetivamente letrista e compositor, "tourearam" o regime totalitário e a burguesia que o apoiava, no palco do Grande Prémio TV da Canção, no Teatro Maria Matos. Estávamos, precisamente, a 26 de fevereiro de 1973: "Quatro milhões de telespectadores durante três horas não arredaram pé da sala da televisão", referiu o Diário de Notícias no dia seguinte.
Uma "Tourada" musical ganhou, mas incomodou os espíritos estabelecidos, embora ainda fosse o tempo dos "caminhos para o futuro" que o presidente do Conselho, Marcello Caetano, prometera, dias antes, em Conversas em Família (15 jan.). Neste episódio, o problema da política ultramarina e as suas incidências nacionais e internacionais foram o tema da comunicação, rejeitando o Governo o desarmamento e o abandono da guerra. Havia portugueses que, pelo contrário, se insurgiam perante esta intransigência. A intervenção pelas palavras musicadas era uma via.
A sátira e a crítica bem-disposta marcariam o festival desse ano. "Em terra de Tordo quem tem Ary é rei", intitulou a revista Rádio & Televisão (3 mar. 1973). Os autores formavam uma dupla explosiva... de intervenção. Na sala da casa de Ary, por sinal habitualmente fechada, o poeta pergunta a Tordo o seguinte, depois de este tocar uns acordes: "O que é que te faz lembrar isso?" Tordo responde: "A tourada". E foi assim que, com esta base, o poema foi escrito a partir de uma listagem de termos técnicos que o compositor facultou ao poeta. Ary não percebia de touradas, mas conhecia os meandros da sociedade portuguesa, designadamente aquela que se vestia a rigor, tal como exigia a RTP para a noite do espetáculo, smoking ou vestido de noite, mas que Tordo não cumpriria no seu jeito rebelde.
CitaçãocitacaoAry e Tordo, "el diestro e su apoderado", puderam gabar-se de terem feito uma boa "faena", com saída honrosa pela "porta grande", mas aquela ainda não era a época para ganhar a canção política na Eurovisão.
Ary escreveu a letra num fôlego, para chegar ao que mais lhe suscitou curiosidade, o "inteligente", o homem que comanda as touradas, mas que na canção se refere ao ex-ministro da Educação, José Hermano Saraiva, a propósito de um discurso que proferira contra as manifestações estudantis, em maio de 1969, dizendo precisamente que era necessário acabar com as canções cantadas pelos estudantes. Meio século depois, só agora se soube quem era o visado.
A canção foi uma das quatro de Tordo submetidas à RTP, no final de 1972, enquanto Ary também concorreu com É Por Isso Que Eu Vivo, com outro poema metafórico, na voz de Paco Bandeira: "Eu sou o poeta que nasce da terra com tudo a dizer", sem censura. O júri foi presidido pelo realizador Luís Andrade, também fazendo parte Baptista Rosa, Ivo Cruz, Peres Rodrigues, Mello Pereira, Feijó Teixeira, Francisco d"Orey, António Andrade e Henrique Mendes. Reuniu no período de 26 de dezembro a 18 de janeiro. Depois da aprovação das canções para o concurso, através da análise da partitura, do poema e da gravação (sem identificação dos autores), Luís Andrade e Mello Pereira (da programação recreativa da RTP) são chamados ao diretor de programas, que lhes fala das reticências colocadas pelo censor em relação à Tourada, a que os primeiros reagem com o espectro da demissão, seguindo-se uma reunião com o presidente da RTP, Ramiro Valadão, que propõe que a letra seja apresentada ao secretário de Estado da Informação e Turismo, César Moreira Baptista, que não se opõe. Só mais tarde soltaria a frase: "Mas esta não é a nossa tourada!". Aliás, a censura sempre foi branda para com o mediático Grande Prémio TV da Canção, sobretudo desde 1969 em que começaram as entrelinhas nos poemas.
CitaçãocitacaoNa sala da casa de Ary, por sinal habitualmente fechada, o poeta pergunta a Tordo, depois de este tocar uns acordes: "O que é que te faz lembrar isso?" Tordo responde: "A tourada." E foi assim que, com esta base, o poema foi escrito a partir de uma listagem de termos técnicos que o compositor facultou ao poeta.
Com arranjo musical do maestro Pedro Osório e a posterior direção de orquestra do maestro Jorge Costa Pinto (nem maestros nem músicos foram vistos pelos telespectadores), a sátira taurina congeminada por Tordo e Ary venceu em Portugal, ganhou 35.000$00 e saltou a barreira para o Luxemburgo: ambos "cortaram orelhas e rabo na lide maior da canção portuguesa de festival. À quinta vez, quem tanto porfiou alcançou, e Fernando Tordo tinha lágrimas a fazerem-lhe negaças nos olhos e suor a correr pelo rosto afogueado quando uma pequena multidão não aficionada se juntou em redor do Teatro Maria Matos. A Tourada findou com gritos de "lixo" e "fora", com cochichos e apitos agitados por quem não vestia smoking (mesmo alugado), nem saíra do quase sumptuoso (e asfixiante) ambiente." (Flama. 2 mar. 1973, p. 28). A plateia a preto-e-branco e Tordo de jaquetão cor-de-tijolo, mas para o povo era cinzento na televisão.
Na hora da vitória, Fernando Tordo exclamou que a Tourada fazia falta: "Não cantei a pensar no júri. Cantei a pensar em todos vós, em todos nós. É para vocês que eu canto".
Um propalado "crime" de lesa-tauromaquia fez com que a canção se visse onde nunca suporia estar: "Numa vasta e ululante arena, assistindo a estocadas dos "diestros" e das bancadas. Todos pedem as orelhas do inimigo, enquanto as suas se avermelham de indignação. Em Portugal, não existe o ritual da morte dos touros, mas não falta a caça aos tordos..." (Flama. 9 mar. 1973, p. 30). Era popular a transmissão anual da "Corrida TV". Quando, a 17 de março, a organização da Grande Noite do Fado decidiu entregar o Prémio de Imprensa ao Grupo de Forcados Amadores de Lisboa e convidou Ary dos Santos para fazer a respetiva entrega, o poeta da Tourada saiu nos braços da polícia, protegido dos espectadores que o apupavam.
Esses exigiam vingança, vendo touros e toureiros, forcados e peões de brega de rastos. Tentaram um comunicado radiofónico, que foi recusado, uma ação judicial contra o autor do poema, não consequente, e um protesto verbal junto de dois membros do Governo, o ministro das Corporações e o secretário de Estado da Informação e Turismo. Pretendia-se impedir a entrada na "faena" eurovisiva e a sua retirada das ondas radiofónicas. Do lado dos autores, a "faena" contestatária da classe tauromáquica não foi levada a sério, até agradecendo a promoção, porque a canção não se apresentava mais do que uma sátira de costumes, ou como disse Alexandre O"Neill, "a sátira ataca o que há de postiço e de cartaz na Festa e no resto" (Ibid., p. 34).
Tourada viajaria para o Luxemburgo "com bandarilhas de esperança", não só para uma consagração lá fora, mas essencialmente para uma outra vitória que se avizinhava para o povo português e para a qual se queria que a festa não arrefecesse. A justiça da apoteose de Tourada e a esperança levaram todos os participantes a baterem palmas ao festival, que apesar de tudo continuaria a ser festival, refere O Século Ilustrado (3 mar. 1973).
Com a realização de Luís Andrade, um filme de três minutos foi rodado no Algarve e no Alentejo, e teve imagens de arquivo de outros locais do país. Apenas em escassos segundos há imagens relacionadas indiretamente com a festa taurina, porque no regresso o carro detém-se na estrada e nos campos alentejanos, onde Tordo deambularia por entre uma manada de touros. O filme foi exibido em Londres, para onde se deslocou Costa Pinto, não com essa intenção, mas para falar com Tony Bennett, que fez um concerto, a 25 de março, no London Palladium, cujo filme passaria na RTP.
Foram assinados contratos para a edição em disco da canção, que foi divulgada na Europa em três idiomas (inglês, francês e espanhol) e com material complementar para revistas, jornais, estações de rádio e cadeias de televisão. A versão francesa foi muito elogiada, e houve quem perguntasse por que razão não havia a Tourada de ser interpretada em francês, o que não seria bem visto pela RTP, obviamente, nem pelo Governo.
Fernando Tordo apenas teve um cartaz promocional, a preto-e-branco, no átrio do Hotel Cravate. Os seus discos e o dossiê informativo foram em número insuficiente para a distribuição pela comunicação social e pelos representantes de outros países, esgotando-se logo após a chegada, para além de se não verem e ouvirem nas discotecas da cidade, onde por sinal habitavam cerca de 20 mil portugueses. Ainda assim, soou aos ouvidos dos imigrantes no Luxemburgo, para quem o cantor atuou numa festa por eles preparada, cantando essa e outras canções do seu repertório. Foi a surpresa geral entre esses portugueses, que não conheciam a nova música feita em Portugal.
A nossa Tourada foi a terceira canção a ser interpretada na noite do evento e, no final, Tordo pegou bem "pelos cornos da desgraça" o décimo lugar (80 pontos): "O Ary fez da Tourada um limão. Espremeu-o e deu diversos sumos" (Flama. 6 abr. 1973, p. 41), referiu. Neste festival eurovisivo, o que ganhou foi a "Tourada do Dinheiro" (O Século Ilustrado. 14 abr. 1973, p. 6.). Fernando Tordo referiu que estava demonstrado que a maior parte dos componentes do júri preferia canções para assobiar, do que poemas para pensar, entendendo ser o da Tourada o melhor poema do festival. Em exclusivo para a Tele Semana, o jornalista Raymond Nicholas faz um comentário ao espetáculo, no qual considera a canção portuguesa "uma daquelas que surgiu neste festival do Luxemburgo com o propósito de sacudir velhos e mornos conceitos de estilos que mais interessam a festivais deste género. E, como tal, para além do valor intrínseco da canção e das suas virtudes poéticas e musicais (e, ainda, da bela sugestão de coisa própria, em confronto com géneros de consumo internacionalizado), acabou por ficar um tanto ou quanto distante, na classificação, do lugar que, em minha opinião, lhe pertence." (Tele Semana. 13 abr. 1973, pp. 42-43)
Ary e Tordo, "el diestro e su apoderado", puderam gabar-se de terem feito uma boa "faena", com saída honrosa pela "porta grande", mas aquela ainda não era a época para ganhar a canção política na Eurovisão. Onze e picos e um "boa-noite" do locutor português, Artur Agostinho, finalizou a transmissão para Portugal, num dia em que coincidiu, curiosamente, com um dos quatro do Congresso da Oposição Democrática, em Aveiro (4 a 8 de abril).
Em Portugal, o poder da palavra atingiu o primeiro lugar, através de uma canção-metáfora. Foi um ataque bem-sucedido, marcando uma geração e uma época. Os problemas do povo português eram cada vez mais graves e verificava-se a total incapacidade das forças dominantes para os resolver. Aliás, ontem como hoje. Que venha outra dessas "touradas"!
E parece que esse foi o único período em que, na RTP, a seleção de canções foi transparentemente democrática, tal como as fontes antigas documentam, porque das outras mais recentes, pelos vistos, não se sabe delas... "E cismo!"
Professor universitário e investigador em Eurovisiologia