A terceira geração a fazer os mais famosos gelados de Portugal

Brunch com: Eduardo Santini, gelateiro e administrador da Santini.
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Quando Attilio se fez às estradas da Europa, viajar era atividade pouco comum. Mas nesses primeiros anos do século passado, sentiu que a sua missão era dar continuidade à tradição familiar mas torná-la também uma inovação com a sua própria assinatura. Terceira geração de gelateiros, deixou Cortina d"Ampezzo para trás quando fixou o coração em Valência, Espanha, onde conheceu Isabel Catalan Saez. Mas foi a Portugal que acabaram por chamar casa logo nos anos 40, fruto da resposta a um desafio do cônsul português João Moraes. No último ano dessa década, nascia a primeira geladaria da família, na Praia do Tamariz, onde o cone se vendia a 1,5 escudos. E se os gelados que roubaram o nome à família Santini não demoraram a ganhar fama por toda a Europa e até entre a realeza - ficou célebre a capa da Epoca que retratava a princesa Maria Beatriz de Saboia a deliciar-se na geladaria portuguesa -, a sua loja mais icónica só firmaria raízes 20 anos mais tarde.

"Recordo-me bem da minha infância e do meu avô, de como era uma pessoa afável; até hoje é o exemplo dele que seguimos de como tratar os clientes, do atendimento personalizado, as receitas, os cuidados", conta Eduardo Santini, que ainda guarda bem vívida a memória dos tempos em que Cascais se reunia na mítica escada da loja da Avenida Valbom, a comer gelados. "Quando somos pequenos, nem temos bem a noção do que estamos a ver, é a nossa realidade. A minha vida era estar por ali, ver fazer e comer os gelados que me tivesse vontade." Mas hoje entende o muito mais que há nessa imagem.

Terceira geração à frente do negócio, tal como o avô o era, Eduardo admite sentir alguma pressão da herança a que deu continuidade desde antes até de terminar o 12.º nos Salesianos. "Diz-se que a primeira geração faz, a segunda aproveita e a terceira destrói...", e logo: "mas acho que temos conseguido fazer um bom trabalho, acho que o meu avô estaria orgulhoso". Essa tarefa, que lhe coube a ele de forma natural, não forçada (o irmão mais novo é psicólogo), foi aprendida primeiro ao lado do avô, a quem ia ajudando nas férias de verão enquanto os amigos passeavam e mergulhavam pelas praias vizinhas; depois do pai, já mais profissionalmente.

"O verão nessa altura era diferente de hoje, as épocas estavam muito bem marcadas e para mim definiam-se também pela cadência das matérias-primas que iam aparecendo. Lembro-me de sempre de ver chegar o leite, a nata, as amêndoas... e de saber que o verão já ia a meio quando começava a haver framboesa. Quando vinham os pêssegos de fim de agosto, vermelhões e cheirosos, era sinal de que as férias estavam a acabar", conta-me, à mesa da loja geminada com a fábrica de gelados onde me recebeu.

Por ali, o que se vê pode não ser da época do avô, mas partilha-lhe o ADN. As poucas máquinas que assistem a produção artesanal, seguindo à risca o receituário deixado por Attilio, aproveitando os mesmos ingredientes mas somando-lhe alguns novos que fazem falta aos sabores criados pelo neto com igual preceito, são versões atualizadas da mesma marca e modelo das que geraram os primeiros de todos os Santini.

O receituário tradicional, o método, as características que o fundador imprimiu à geladaria mantêm-se ao detalhe. Mas agora o preceito passa pelas 120 pessoas que já servem o negócio em 12 lojas (uma no Porto, uma em Faro e as restantes na área de Lisboa).

Sempre que o assunto são gelados - exceto para revelar o limão e chocolate como seu preferido ou para contar a história de como nasceu o Gelado do Manel, criado à medida do palato do filho mais velho -, Eduardo fala no plural. E entende-se, porque de facto vê a Santini como fruto do trabalho da família, alargada a todos quantos contribuem para fazer do negócio um sucesso com mais de 70 anos.

Se hoje reconhece que ter feito "um curso de Gestão teria dado um jeitaço", a verdade é que muito poucos sabem mais de gelados do que ele, experiência adquirida de mãos na massa, a receber e misturar matérias-primas - "são todas de fornecedores locais, quase todos nacionais, porque há ingredientes como a manga e a vagem de baunilha que têm de vir de fora", explica -, a criar novidades. As deste ano dão continuidade ao trabalho criativo que Eduardo tem vindo a prosseguir, dos picolini (gelados de pauzinho lançados em plena pandemia, com novos sabores todos os meses) , à gama de boiões, na qual se inclui uma parceria que gerou o gelado de tiramisù de Baileys. Outras surpresas estão a ser cozinhadas para este verão, mas o gelateiro não confessa, que o segredo ainda é alma deste negócio - "estão em fase de testes..."

Esse trabalho é a Eduardo que cabe e talvez o seu entusiasmo tenha contagiado os filhos a aventurar-se pelos seus próprios sabores. Foi assim que nasceu o Gelado do Manel. "Não estava programado, até porque estas coisas têm de vir da alma, do coração. Os meus filhos vieram visitar-me à loja e o Manel disse que queria fazer um gelado e que o sabor seria romã com pedaços de framboesa. Devia ter uns 10 anos. O Martim, dois anos mais novo, quis imitar e fez um de tomate com mozarela. Encontrámos, descascámos, cortámos, tratámos e misturámos os ingredientes e fizemos os dois", conta o pai, visivelmente feliz com o interesse dos filhos que, nesse momento, passaram a barreira de simplesmente gostar de devorar gelados para revelar algum traço gelateiro no ADN. O gelado de Martim, hoje com 11 anos, não vingou - "há de fazer nova tentativa, mas o outro ficou interessante e temo-lo à venda". Além disso, assume que a história associada é tão interessante quanto o sabor, "em termos de marketing, conta".

Esse envolvimento dos pequenos conta mais para quem pouco sai daquele mundo - a mulher, Joana, conheceu-a nas festas de Santo António, em Cascais, "numa das raras festas a que fui", conta - e que tantos verões passou longe dos filhos, dividido entre o amor pelos gelados e alguma dor de alma por não partilhar esses tempos mais divertidos com os filhos. Foi isso também que ajudou à decisão de entrada de um sócio para o negócio da família.

A expansão da Santini começara já com o pai ao leme, mas foi com Eduardo que tomou fôlego, com Filipe de Botton a entrar no barco, estava a Santini a fazer 60 anos de vida. "Os meus pais começaram a falar em reformar-se, eu já mal via o Manel que tinha 2 anos, era preciso dar uma volta que não pusesse em causa o que nós éramos e o que o nosso produto significava para nós. A parceria com o Filipe foi muito rápida, porque há imensa sintonia sobre o que queríamos e o que era o Santini, deu-nos tempo a nós e mais estabilidade a todos. Conseguindo abrir todo o ano, é bom para todos, trabalhadores e clientes incluídos", diz. "E não tem corrido mal, temos crescido de forma sustentada, com muito cuidado em preservar a tradição de fazer que vem do meu avô."

A tranquilidade de Eduardo faz desconfiar que não é de grande stress, mas confessa que perdeu o sono quando a pandemia lhe fechou as portas. "Nunca tinha passado por um sufoco destes, a ter de pensar no negócio dia a dia, sem conseguir planear mais do que semana a semana. E pior, a pensar como iria pagar aos trabalhadores, como aquelas famílias iam sobreviver. Mas conseguimos superar bem esse momento, sem encerrar nenhuma loja e mantendo toda a equipa", diz. Também agora a guerra traz engulhos ao negócio, mesmo que os fornecedores estejam por perto - "há fenómenos que afetam toda a cadeia das matérias-primas, desde a falta de mão-de-obra para as colheitas ao preço dos fertilizantes, e isso faz subir os preços", diz. "Mas é com o que temos de lidar."

Se é verdade que pensar em gelados traz felicidade, Eduardo parece não perder tempo com pensamentos negativos. Quando não está na lufa-lufa da gestão diário ou entre produtos, aproveita para fazer crossfit ou padel, para tirar férias na zona de Troia ou no Algarve. "O verão é a nossa época alta, tenho de manter-me por perto, caso seja preciso resolver alguma questão", explica. "As pessoas tendem a ver só o lado solar disto, mas é um negócio como os outros", lembra.

E o que gostava Eduardo de fazer com a marca Santini? "Já demos um salto bem grande e é preciso algum cuidado nestas coisas. Desde que começámos a evolução, tivemos sempre grande preocupação em manter a qualidade e é esse o grande objetivo que não podemos perder de vista. Isso e manter a empresa sustentável." Depois, arrisca sonhar: "O gelado que fazemos é sensível, até pelas suas características - sem conservantes, sem acrescentos, qualquer logística tem de ser muito bem pensada. Mas sair do país seria um ponto alto para a marca", admite, antes de nos despedirmos num dia em que os aguaceiros não permitem adivinhar ser o primeiro do verão.

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