É dada como certa a instalação em Portugal de importantes estruturas das multinacionais Google e Amazon - a segunda das quais parece ter optado pelo Porto. Aguarda-se confirmação, mas sabe-se, sobretudo depois da Web Summit em Lisboa, que os sectores governamentais que lidam com este assunto estão optimistas e vêem a chegada com alegria e sorridente entusiasmo..Mas como acertadamente lembra o aforismo popular, não há bela sem senão. As grandes sociedades de autores a nível mundial são as primeiras a reconhecer a dificuldade de realizar negociações justas e atempadas com empresas que se sentem mais fortes do que os governos e sabem estar protegidas por uma impunidade que, por vezes, as torna mais fortes do que os próprios tribunais..Durante os dois mandatos de Obama, a Google teve situação privilegiada nos EUA, beneficiando do apoio que fez questão de dar às candidaturas do político que a era Trump converteu em alvo habitual de ataques, bastando dar o exemplo da manobra política contra o Obamacare. Em Davos, o empresário e investidor George Soros, que é, além de outras coisas, um teórico reconhecido ao escrever sobre estes poderes e sua suposta legitimidade, não hesitou em afirmar que Google e Facebook "manipulam os utilizadores". E mais, com a legitimidade de quem tem posição privilegiada para abordar estes temas, alegou que essas empresas se vão converter numa "teia totalitarista" difícil de controlar..Sabemos que, em nome do conceito de modernidade e das conveniências do mercado laboral e etapas futuras da revolução tecnológica, se desfraldam pendões e se lançam foguetes (sem esquecer, na altura do foguetório, a tragédia de Pedrógão) quando estas poderosas multinacionais entram nas nossas águas..As palavras de Soros são simples e eloquentes: "A exploração mineira e as petrolíferas exploram o ambiente; as redes sociais exploram o ambiente social." Fica tudo dito, ou quase. Mas Soros, com a sabedoria serena, vantagem de quem não está na crista alienante da grande competição global, foi mais longe, afirmando que a forma como estas empresas actuam pode ter "impacto adverso na democracia e, por conseguinte, no resultado de eleições". Para ser mais claro e perceptível, declarou que "estas empresas enganam os utilizadores ao manipular a sua atenção e dirigi-la para os seus próprios interesses comerciais. Assim, constroem deliberadamente o vício nos serviços que oferecem. E isto pode ser prejudicial, principalmente para adolescentes"..Propõe Soros , citado pelo The Guardian, que haja muito maior regulação porque, à míngua dela, "Google e Facebook são reais ameaças à sociedade". Com a reflexão criativa que costuma caracterizar as suas intervenções, alerta para a criação de uma "teia totalista que nem Aldous Huxley e George Orwell teriam imaginado". Aos 87 anos, o optimismo de empresário corajoso e visionário permite-lhe afirmar que "os dias deles estão contados". Estarão mesmo?.Agora chega a vez de Portugal entrar na zona de intervenção das tantas vezes intocáveis multinacionais. O essencial fica dito, o aviso feito. No ano em que se comemoram os 200 anos do nascimento de Karl Marx, judeu alemão que criou uma verdadeira teoria geral da injustiça social e económica analisando os mecanismos de acção do capital, é bom que tentemos adaptar alguns conceitos a esta realidade, não ficando à espera que os líderes do Facebook promovam jornadas de reflexão teórica e até psicanalítica para perceber o mal que nos podem fazer. E a verdade é que, mesmo sendo globais e omnipresentes, fazem. Soros pode ir ainda mais longe com o aviso certeiro..Escritor, jornalista e presidente da SPA