A surpresa de Rui Tavares
Quando o Livre se fez valer de uma providência cautelar para impor a sua presença nos debates televisivos destas legislativas, interpretei-o como capricho. Depois do problemático mandato de Joacine Katar Moreira no parlamento e da derrota ao lado de Fernando Medina em Lisboa, que poderia ter Rui Tavares a dizer ao país que não tivesse dito já na RTP ou no Público? Ora, enganei-me. Notavelmente, não só tem coisas para dizer como tem coisas acertadas para trazer. Na última semana de embates no pequeno ecrã, Tavares é o único líder partidário ainda por derrotar e ‒ sobretudo ‒ o único que conseguiu vergar André Ventura e o seu programa. Não o fez no resguardo senatorial de Catarina Martins - inovação curiosa numa força de protesto - nem tão pouco na agressividade de António Costa, mas antes, e mais eficazmente, proposta a proposta, medida a medida, vazio a vazio.
Frente a frente com a coordenadora do Bloco de Esquerda, o fundador do Livre venceu pelo seu à vontade técnico em matérias europeias (a que Martins chamou "formalismos") e por um espírito de convergência a que o BE e o PCP faltaram ao derrubarem o governo que haviam antes apoiado. Tavares, mordazmente, recordou a coligação autárquica do Livre e do Bloco em Oeiras e desafiou Catarina Martins a uma aliança democrática, ecológica e de esquerda para olhar os desafios do país. Martins, como Costa, fez ouvidos de mercador, ainda que por razões diferentes: o Bloco evita reconhecer como interlocutor nacional um partido que disputa o seu eleitorado; o PS não pode desviar-se do apelo à maioria absoluta até dia 31 de janeiro, quando a postura dialogante será prontamente retomada.
A estratégia de Rui Tavares à esquerda, nesse aspeto, tem semelhanças com as de Rui Rio à direita. Por coincidência no tempo e no posicionamento, ambos são rostos da moderação nas suas áreas políticas e ambos, contrariamente aos demais, possuem a liberdade de quem esteve distante do poder na última década. Rio está significativamente menos desgastado do que Costa, primeiro-ministro há seis anos. Tavares está naturalmente mais solto do que Jerónimo e Catarina, aliados ou opositores do Partido Socialista consoante a semana. Ambos os Ruis são, de certo modo, um voto útil para áreas e propósitos distintos: Rio é um voto útil na mudança de primeiro-ministro, com uma continuidade ao centro; Tavares é um voto útil na manutenção da "geringonça", com uma alternativa às restantes - e já experimentadas - esquerdas.
Ambos apostam na estabilidade e na governabilidade, não descartando a necessidade de mudanças, mas mostrando-se disponíveis para pontes com os respetivos concorrentes. O seu trunfo - tanto de Rio como de Tavares - é a sua abrangência; mercadoria rara no nosso sistema partidário. E a vantagem dessa pele política é dupla: por um lado, não cria anticorpos; por outro, confere a segurança democrática de quem estará bem em qualquer cenário pós-eleitoral. Não é por acaso que o momento alto de Tavares, no confronto com António Costa, foi ao atirar ao primeiro-ministro algo como "eu posso garantir que estarei na oposição a um governo do PSD, o senhor não". Esse conforto com o day-after, seja ele qual for, é uma enorme mais-valia e, nestas eleições, são estes dois homens que a têm.
Surpreendentemente, pelo seu conhecimento sobre a realidade europeia e por um inesperado gancho político, Tavares é a novidade da campanha eleitoral. Depois de ser europeísta no Bloco antes de o Bloco ser europeísta e de defender uma "geringonça" antes daqueles que vieram a compô-la, o político Rui Tavares cruzou-se finalmente com o tempo político de Rui Tavares. Com o Bloco de Esquerda e o PAN em perda de fulgor, o seu progressismo ambientalista ganhou espaço. Com a presença nos debates televisivos, esse espaço foi preenchido. A ver nas urnas.
Colunista