A Sul de nenhum Norte
Há dias, quando regressei de Trás-os-Montes, o senhor Zé do café perguntou-me como estava o tempo lá em cima, o que não deixa de ser singular e curioso, porquanto os primos do senhor Zé do café, quando no Verão viajam de França até Bragança, dizem que vão là-bas. Que o acima de uns seja o abaixo de outros é facto compreensível num planeta dividido em quatro pontos cardeais, ou mais. Sucede, porém, que associamos a esses pontos um sem-fim de preconceitos, de representações, fruto do modo como nos vemos no mundo, e às vezes as coisas não batem certo: ao Norte ligamos o frio, as neves e os dias curtos, e a ideia que em Lisboa temos de Bragança é de uma terra álgida e invernosa, até com esquimós e ursos; pelo contrário, julgamos que o Sul de França é cálido e soalheiro, no eterno azul da Riviera, o biquíni da Bardot. Acontece que Bragança está a 41º de latitude e Nice ou Marselha a 43º, ou seja, o Sul de França é mais a norte do que o Norte de Portugal. Mais ainda, se o Norte é frio e o Sul é quente, como será o clima do Leste, que tempo fará no Oeste? E se o Sul é quente, que diremos da Antártida, o cúmulo meridional?
Temos também tendência para pensar que o Leste fica à direita, com o Oeste à esquerda, pois assim procede o Sol, erguendo-se a Oriente. Mas, quando imaginamos a Austrália, naquilo que ela é como país, no querer das suas gentes, no modo como se apresenta ao mundo (por exemplo, ainda agora, nesta guerra da Ucrânia), não a vemos como "Oriente", como parcela do Leste. Por razões histórico-culturais, políticas e geopolíticas, até rácicas ou racistas, encaramos a Austrália e a Nova Zelândia como "Ocidente", um pedaço de nós transplantado aos antípodas, com um governo de brancos.
As coisas complicam-se ainda mais nos países ou povos que, por um azar do destino ou sorte da geografia, foram situados em zonas "de transição", digamos assim. No tempo do domínio britânico, conta-nos Margaret McMillan em Women of the Raj, as autoridades da Índia estiveram meses sem se entender sobre se, para efeitos estatísticos, os arménios deveriam ser considerados asiáticos ou europeus e ainda hoje não sabemos ao certo como haveremos de tratar a infausta Turquia, país sito a Oriente, é certo, mas membro de uma organização de defesa do Atlântico Norte.
Desde tempos imemoriais usamos o número quatro para dividir e para lidar com a realidade: a filosofia da Antiguidade conhecia quatro elementos, a terra, a água, o fogo e, depois, o éter; baseada neles, a medicina antiga, de Empédocles, Hipócrates ou Galeno, falava em quatro humores ou temperamentos, o sanguíneo, o fleumático, o colérico e o melancólico; havia quatro idades da vida e quatro estações do ano, quatro grandes ventos, quatro pontos cardeais. A estes quatro pontos, e aos que neles vivem, associamos características atávicas peculiares, muito próprias e inconfundíveis. Os povos do Sul são quentes e indolentes, desorganizados, irresponsáveis, gastadores, mas felizes (e bons amantes); os do Norte, laboriosos, disciplinados, poupados, frios no trato e na vida. No Sul, ruído e festa; no Norte, silêncio e reflexão. Que dizer então de França, normanda e mediterrânica? E de Itália, com Milão e o Mezzogiorno? Ou de Espanha, que vai das Astúrias a Sevilha?
Certas ou erradas, o facto é que estas percepções moldam a forma como vemos o mundo e têm extraordinária importância política e geopolítica, mais poderosa do que os discursos dos líderes ou os gestos das várias nações: no doloroso resgate de 2008-2009, os tablóides ingleses, e não só, abundaram em expressões desprimorosas para os países da Europa do Sul, descritos como PIGS (Portugal, Italy, Greece, Spain), como "Club Med" ou como "Olive Belt" (o "cinturão da azeitona"), mas a conversa azedou quando, em 2011, um país do Norte, a Irlanda, se juntou ao grupo dos endividados, o que obrigou a acrescentar um "i" e a falar de PIIGS e, sobretudo, a rever conceitos sobre a indolência despesista das gentes meridionais; estas, de seu lado, também não deixaram de mobilizar os seus preconceitos e as suas xenofobias e a Sr.ª Merkel, coitada, acabou retratada, nos graffiti das paredes ou nos cartazes das manifs anti-troika, como novel sucessora de Hitler, ornada de cruzes suásticas.
No fundo, ao representarmos os outros com tais figurações e estereótipos, representamo-nos a nós próprios, e àquilo que julgamos ser: em Marrocos, um português sente-se nórdico, um ariano puríssimo, que contempla com desdém o caos reinante, a sujidade dos souks, a vozearia dos cafres; em Estocolmo ou Copenhaga, pelo contrário, vemo-nos como atrasados, de mão estendida e pele tisnada, perplexos ante a organização das cidades e o asseio dos transportes públicos.
Mas se hoje dividimos o mundo em quatro pontos, ou partes, cada qual com 90º, é curioso pensar que nem todos assim o fizeram: nos tempos antigos, o hinduísmo e o budismo usaram oito ou dez coordenadas de direcção e, para eles, a vida ou os sentimentos não se espalhavam aos "quatro ventos", mas sim em dez direcções. É possível, até provável, que tenhamos esta obsessão quaternária devido ao facto de, no Egipto antigo, o deus Hórus ter quatro filhos, evocando-se os quatro ventos, construindo-se as pirâmides na orientação norte-sul. O conhecimento, desde tempos babilónicos, da localização fixa da Estrela Polar propiciou que a observação da trajectória do Sol se fizesse no sentido leste-oeste, levando os povos do Crescente Fértil a falarem da "quadratura" do mundo. Mais tarde, os judeus referiram-se aos quatro "confins" ou "extremos" da Terra, herança que acabou sendo legada aos gregos, em seguida aos romanos e depois a nós. Norte, Sul, Este e Oeste, os quatro filhos de Hórus.
Tudo isto é explicado ao detalhe no brilhantíssimo ensaio que o alemão Dieter Richter, especialista em literatura e história cultural da Europa, dedicou ao Sul, enquanto ponto cardeal e geográfico, mas sobretudo enquanto conceito cultural e mental. O livro chama-se, em tradução castelhana, El Sur. Historia de un punto cardinal. Un recorrido cultural a través del arte, la literatura y la religión (Ediciones Siruela, 2011), e é um guia deslumbrante, precioso, num tempo em que, como nunca, precisamos do Norte para nos nortearmos, ou do Oriente, para nos orientarmos.
É de Leste, com efeito, que vem a palavra orientação, pois de lá surge o Sol, o Levante, o começo da vida, a infância e a juventude. Ex oriente lux. De Leste vem a luz, do Sul o calor, e, na generalidade das culturas e das civilizações, no sânscrito, no hebreu ou no árabe, o Leste está "em frente", enquanto o Oeste está "atrás". O Norte, ao que parece, tem uma raiz etimológica que o associa ao lado esquerdo. Só com a difusão das bússolas, na Europa da Baixa Idade Média, é que se impôs a orientação polar ao Norte, mas o Leste ficou sempre associado ao Paraíso Terrestre, ao Jardim do Éden, a terra de onde surgiram as três religiões monoteístas, o ponto em direcção ao qual se situavam os altares dos templos cristãos, as sepulturas dos judeus e as orações dos muçulmanos. No Evangelho de Mateus (24, 27), Jesus, o "sol da justiça", surgirá de Leste, como Filho do Homem, tal qual o relâmpago, e, ao longo da Idade Média, o Oriente foi sempre visto como terra de infindas riquezas, faladas na lenda do Prestes João ou nos relatos de Marco Polo, confirmadas pelo comércio da Rota da Seda e de outros tesouros da China. Ainda hoje, com razão ou sem ela, não concebemos o Oriente como um lugar de grandes riquezas naturais vindas da terra (estas muito mais associadas ao Sul do mundo, das Áfricas ou dos Brasis), mas como uma fonte de preciosidades transformadas pela mão humana: têxteis opulentos, colares de pérolas, gadgets da electrónica.
A par desta imagem, outra se foi forjando, a do Oriente como lugar de embriaguez e de caos, fonte do excesso e do irracional, figuração que assumiu forma literária n"As Bacantes, de Eurípides, em que o mundo ordenado e apolíneo da polis é devastado pelo furor de Dioniso, que, "desde a terra da Ásia", se precipitou sobre a cidade-Estado. A conquista do Egipto por César trouxe o fascínio pelo misterioso para o coração de Roma, a convicção de que nas margens do Nilo havia uma "civilização" ou algo parecido, mas não apagou o preconceito, vindo dos gregos, de que os povos do Oriente eram barbaroi, os bárbaros que "falavam rudemente". Preconceito que, como geralmente sucede, tinha um fumus de verdade e de razão de ser: desde as Guerras Médicas às Batalhas de Maratona e Salamina, passando pela dos Campos Cataláunicos, no ano de 451, ou pelas de Lechfeld, de 955, ou de Kahlenberg, em 1683, o inimigo sempre veio de Oriente, a terra do estranho e do perigo, do perigo maior e mais radical, aquele que não nos quer apenas vencer em combate, mas arrasar os fundamentos da nossa civilização e do nosso modo de vida. Os tártaros eram os tartaroi, os bárbaros vindos da Tartária, o reino do caos, o submundo dos pecadores, o que significa que, desde há séculos ou milénios, no imaginário da Europa e do que a partir da Europa se fez "Ocidente", o Leste foi sendo concebido de forma radicalmente ambivalente, ora como Éden misterioso e prazeroso (a Índia dos hippies dos anos 60, o Vietname dos "mochilões" da actualidade), ora como Inferno e ameaça infrene (o "perigo amarelo" do ensaio Le péril jaune, de 1897, do russo Jacques Novicow, usado por Guilherme II da Alemanha e, depois, na guerra russo-japonesa). O que mais abalou os alemães em 1945, o que mais lhes mostrou que o seu mundo tinha desabado, não foram os bombardeamentos ou os tanques dos Aliados, mas, como refere Anthony Beevor em A Queda de Berlim, a visão apocalíptica de camelos montados por tropas mongóis a desfilarem pela Unter den Linden abaixo. Este foi o erro maior e mais fatal de Vladimir Putin: ter julgado que poderia levar a cabo uma "operação especial" na Ucrânia sem grandes consequências, esquecendo-se que para nós, os de Ocidente, tudo quanto venha de Leste é sempre tido como uma ameaça civilizacional, existencial - e tratada como tal (que o é: a invasão da Ucrânia é um ataque à modernidade das Luzes, à Europa tolerante e inclusiva, feito em nome da pré-modernidade opressiva e reaccionária, o que torna ainda mais incompreensíveis as posições em prol da "paz" tomadas por certa esquerda).
Também o Norte, durante séculos, foi configurado como um lugar inóspito, uma região de coisas terríveis, a terra das "neves e das nuvens", como lhe chama Homero na Odisseia. Lá habitava um povo mítico, os hiperbóreos, e, dizia Tácito, o Germanicum mare era um mar imóvel, de águas paradas, onde os navios se atascavam, aquilo a que os alemães chamariam o "mar de fígado" (Lebermeer). Ali só existia uma riqueza - o âmbar, nada mais -, dali vinham os "lobos do Norte", os septentrionis lupi de que falou Jerónimo, Padre da Igreja, ou seja, as hordas e as tribos nossas inimigas. No século IX, o monge Rábano Mauro, ao descrever os quatro pontos cardeais do universo, dizia que era a Norte que "o demónio mostrava o seu rosto e o frio a sua impiedade" e, como assinala Dieter Richter, já nos Provérbios de Salomão se afirmava que o vento norte trazia a chuva e as tempestades (25, 23), e Jeremias proclamava que "do norte se derramará a desgraça sobre todos os habitantes desta terra", "do norte se estenderá o mal sobre todos os habitantes da Terra" (1, 14). Alimentados pelas invasões dos viquingues e sobretudo pela ignorância, o desprezo e o medo pelo Norte iriam perdurar durante centúrias, só desaparecendo em finais do século XVIII, nos alvores do Romantismo, com a descoberta da poesia das Terras Altas escocesas, das sagas e dos mitos nórdicos, com os escritos de Herder sobre a força e o vigor dos "povos antigos e selvagens". Ainda assim, o preconceito sulista manteve-se arreigado e bem vivo: na sua Viagem a Itália, Goethe escreveu que os napolitanos viam as terras setentrionais como "sempre cobertas de neve, com casas de madeira, ignorância, mas muito dinheiro". Tal qual as concebemos hoje.
O Oeste, onde o Sol se põe, é, por definição, a terra do ocaso e da velhice, prenúncio da finitude. No Antigo Egipto sepultavam-se os corpos na margem ocidental do Nilo, o hieróglifo usado para "Ocidente" era o mesmo de "reino dos mortos", dizia-se "não vás para poente, pois de lá não regressarás". Do mesmo modo, o épico babilónico de Gilgamesh situa a morte no Ocidente e, na Grécia antiga, Ulisses encontrará o Hades, a infernal terra dos mortos, "para lá das colunas de Hércules", passado o estreito de Gibraltar. Vi os dois litorais até à Espanha, / até Marrocos, e à ilha dos Sardos, / e a outras que em redor o mar lá banha. // Chegámos, eu e os outros, velhos, tardos, / àquela foz estreita, a que submeta / Hércules com sinal de seus resguardos, a fim que mais além não se cometa: / à mão direita lá deixei Sevilha, da outra me havia já deixado Cepta. [Ceuta], é assim que, no Inferno de Dante, Ulisses descreve a sua passagem pelas Colunas de Hércules, rumo a Oeste (Divina Comédia, XXVI, na trad. de Vasco Graça Moura).
Para lá de Gibraltar, para lá dos limites estreitos do Mediterrâneo, era o desconhecido e a morte, o Obstitit Oceanus inquiri de Tácito, o "oceano que resistia a ser perscrutado". Foi esse o grande feito dos portugueses de Quinhentos, que ousaram meter-se por aquele mar adentro: rumaram a Ocidente, buscando um novo caminho d"Oriente, e no reino dos mortos descobriram terras de vida, lugares de infinda e imprevista abundância. O Paraíso, outrora ficado a Levante, passou a situar-se a Oeste, a terra promissionis de onde vinha o ouro, seja sob a forma de metal reluzente, seja nos frutos da natureza, como os tomates, pomi d"oro. Antes de nós, muito antes de nós, outros tentaram a proeza: no ano 600 antes de Cristo, o faraó egípcio Necao II, também conhecido por Neco II, e que era filho de Psamético I e de Mequetenuesquète (e, já agora, que se casou com Quedebinitjerboné, de quem teve Psamético II), enviou uns navegantes para Sul, através do Mar Vermelho, os quais, três anos depois, regressaram ao Egipto vindos do estreito de Gibraltar, ou pelo menos assim o disseram. Heródoto, que contou a história, tinha dúvidas do sucesso, mas, a ser verdade, ele significa que, mais de dois mil anos antes de Bartolomeu Dias, já os fenícios tinham contornado o cabo, mas no sentido inverso. E, em 500 a. C., o cartaginês Hanão, dito o Navegador, ensaiou a circum-navegação de África, mas desistiu (ou voltou para trás) ao largo do golfo da Guiné. De lá trouxe três macacas lanudas e indomáveis, que mordiam quem delas se aproximasse e a que chamou Gorillai (da "tribo de mulheres peludas"), daí surgindo a palavra "gorila".
Simplesmente, e tal como sucederá com as viagens dos viquingues pelo Atlântico Norte, dos périplos dos fenícios, ou dos egípcios, não ficou registo nem memória, razão pela qual, como conclui Dieter Richter, é mais do que legítimo dizer-se que Vasco da Gama "descobriu" o caminho marítimo para a Índia, que Colombo "descobriu" a América e que Cabral "descobriu" o Brasil (ainda que, neste último caso, "achamento" seja uma palavra bem mais bela e pacífica). Não será esse, claro, o entendimento dos povos lá residentes, que resistem a dizer que foram "descobertos" por estrangeiros, quando, na realidade, já viviam numa terra sua há muitos e muitos milhares de anos. Esquecem-se eles que a História é uma história, ou estória, uma narrativa ou um relato do que aconteceu, sempre feito na perspectiva e na óptica de quem o escreve e diz. A História não é o passado, pois esse está morto e enterrado, mas um modo de o contar. Contanto que não entremos em revisionismos e deturpemos o que sucedeu, que não queiramos impor uma versão única e oficial da História, é legítimo, mais do que legítimo, afirmar que existem perspectivas diversas sobre o passado, a de quem diz que Cabral descobriu o Brasil e a de quem conta uma outra história, ou uma história-outra.
À semelhança da História, os pontos cardeais são uma construção artificial e humana, variável consoante as épocas e as civilizações. O modo como vemos o mundo, dividido entre o Norte e o Sul, o Oeste e o Leste, não é essencialmente eurocêntrico, mas mediterrânico. O Mediterrâneo era o mar que, como o nome indicava, ficava situado no centro do universo então conhecido, o fulcro a partir do qual tudo se definia. Até os árabes lhe chamaram "Mar Branco do Meio". Nos mapa-múndis da Alta Idade Média o planeta nem sequer estava dividido em quatro, mas em três partes, pois, após o Dilúvio, tinham sido três os filhos do Noé espalhados pelos confins da Terra. Os três vértices compunham um T, como a cruz de Cristo, com o centro na cidade santa, Jerusalém. Com as viagens de São Paulo e de outros, a fé foi-se alargando para Ocidente: primeiro, Roma; depois, por razões geopolíticas, Compostela. O arco das peregrinações, de Jerusalém a Santiago, passando por Roma, formou assim um anel em torno do Mediterrâneo, o antigo Mare Nostrum dos latinos. Nesse espaço, onde medrara a civilização greco-romana, havia que assegurar uma adequada e justa partilha entre Ocidente e Oriente, uma igualdade na fé, razão pela qual, no século IV, o bispo Máximo de Turim afirmou que "Cristo deu a sua graça ao Oriente através da sua Paixão, mas, para que o Ocidente não ficasse em desvantagem, concedeu-lhe o sangue dos apóstolos". A Leste de Roma, o sangue de Cristo; a Oeste, o dos apóstolos. Assim se forjou o mundo então conhecido, a zona temperata que permitira o florescimento da civilização grega, latina, judaica e cristã. Todos os outros pontos - e povos - eram definidos por referência a esse espaço geocultural, com o frio a Norte, o calor a Sul, o desconhecido a Oeste, o paraíso e o perigo a Leste. As Descobertas e os impérios iriam universalizar esta cosmovisão mediterrânica, que ainda hoje persiste e se impõe nos mitos e nos estereótipos como no mundo se vê o mundo. Sem percebermos isso, nada perceberemos de geopolítica.
Há uns meses, alguém lembrava, recordando Oswald Spengler, que o Oeste é o lugar do poente, a terra do triste crepúsculo. Hoje, de facto, estamos a Sul de nenhum Norte, como diria Charles Bukowski, mas talvez seja prematuro decretarmos a morte da Europa-América: depois de Spengler ter escrito, em 1918, o seu famoso ensaio sobre o declínio do Ocidente, este renasceu das cinzas e de uma guerra tremenda e, nos Trente Glorieuses, conheceu um período de paz e de prosperidade sem paralelo em toda a sua História. De resto, e sem entrar em triunfalismos escusados, de onde vieram os grandes avanços científicos e tecnológicos dos últimos 30, 40 ou 50 anos? Da China e da Rússia? De África e da Latina América? A história da pandemia pode, aliás, resumir-se assim: a China criou o vírus, o Ocidente a vacina.
Ergue-se agora uma nova realidade, a do "Sul global", movimento ou frente de países que em Bandung se figuraram como "não-alinhados" e, depois, como do "Terceiro Mundo" (expressão cunhada, lembre-se, por um ocidental, o economista francês Alfred Sauvy, nas páginas do jornal Le Monde). Fazendo-se porta-voz dessa tendência, veio Lula da Silva afirmar há dias que o Brasil, um "país de paz", não iria ter "nenhuma participação, mesmo que indirecta", no conflito da Ucrânia. Argumentou que o"último contencioso" em que o seu país entrara fora a "guerra do Paraguai", num desastrado lapso de memória ou sinal de ignorância histórica: em Julho de 1944, dois meses após a declaração de guerra, 25 mil soldados da Força Expedicionária Brasileira, de um total previsto de 100 mil homens, desembarcaram em Itália, combateram os alemães em nome da liberdade, desfilaram em triunfo por Nápoles, Turim ou Piacenza. Ao lado de Lula, que teve o desplante de dividir as culpas do conflito entre a Ucrânia e a Rússia ("quando um não quer, dois não brigam"), o chanceler Olaf Scholz salientou o óbvio, que não se trata de uma guerra europeia, mas de uma batalha global pela liberdade e pela democracia, a qual, enquanto tal, deveria mobilizar todas os regimes democráticos do planeta. Em resposta, o novel presidente do Brasil, ouvindo falar em democracia, disse que iria falar com a China, pois estava na hora de ela "pôr as mãos na massa".
Se é este o projecto e o sentido do "Sul global", estamos todos bem conversados. É que, querendo colocar-se numa posição equidistante entre dois blocos em guerra (um deles, democracias, outro só ditaduras), num exercício de Realpolitik que tresanda a oportunismo, o Brasil e outros como ele arriscam-se a ficar a meio da ponte, como sucede aos tolos, perdendo a confiança da Europa e da América, sem com isso a ganharem no Kremlin ou em Pequim. Sendo uma continuação da política por outros meios, lá diz o estafado estribilho, a guerra leva ao limite a divisão schmittiana entre amigo e inimigo - quem não está por nós, está contra nós -, e se o Brasil, a Turquia ou a Índia pensam que conseguem safar-se desta, passando entre os pingos da chuva, fazendo negócios com ambos os lados, estão muito e muito enganados. Depois do veto à entrada da Suécia na NATO, que confiança terão na Turquia os outros parceiros da Aliança? Que apreço merece Orbán nos corredores de Bruxelas? Que amizade poderemos ter com a Índia, que compra o petróleo em saldo.
De tanto querer ter uma voz "própria" e "autónoma" no concerto das nações, alternativa à da Europa-América e à da Rússia-China, equidistante e quimicamente neutra, o "Sul global" arrisca-se a não ter voz alguma, permanecendo na sua triste condição de produtor de recursos e riquezas naturais que outros depredam e exploram. A História recordará que, um dia, numa luta decisiva pela democracia, o Sul... calou-se. Depois, quando quiser falar para exigir "compensações" pela escravatura ou pela injustiça climática, será tarde, muito tarde, e o silêncio cúmplice do Brasil e de outros ser-lhes-á lembrado por aqueles que, a Norte, resistem a que se façam as devidas e merecidas reparações por séculos de exploração colonial. Na Ucrânia joga-se o mundo, mas nem todo o mundo o percebe (ou quer perceber).
Para a Raquel Vaz-Pinto, no seu dia de anos.
Historiador.
Escreve de acordo com a antiga ortografia.