A saúde de amanhã

Jan-Philipp Beck é CEO da EIT Health - uma rede que liga alguns dos melhores agentes de inovação em saúde, apoiada pela UE, com o objetivo de fornecer novas soluções que permitam aos cidadãos viver vidas mais longas e saudáveis
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Com o aumento das doenças crónicas e da multimorbilidade, é recorrendo à tecnologia e à partilha de conhecimento entre fronteiras que a EIT Health procura soluções mais eficientes para ir além das abordagens convencionais de tratamento, prevenção e estilos de vida saudáveis. Em entrevista, explica por que acredita que a ideia de um sistema de saúde europeu único não estará para breve e como a inovação tecnológica pode mudar significativamente a forma como as organizações, os profissionais de saúde e os próprios pacientes gerem a sua saúde.

Como imagina o sistema de saúde europeu no futuro?
Penso que o que é interessante nessa questão é que não existe realmente um sistema de saúde europeu. Embora algumas políticas gerais sejam definidas a nível da UE, os cuidados de saúde na Europa são, na sua maior parte, prestados através de uma vasta gama de diferentes sistemas executados a nível nacional. Essas diferenças podem ser tanto estruturais como operacionais. Por exemplo, o sistema de saúde de pagador único do Serviço Nacional de Saúde no Reino Unido (National Health Service, NHS) é estruturado e operado de forma muito diferente do sistema alemão de pagamento múltiplo, que é pago por uma combinação de um seguro de saúde estatutário e seguros de saúde privados, e a prestação de serviços e os resultados dos pacientes podem variar muito de país para país. Existe, é claro, um argumento para um sistema de saúde unido na Europa, já que muitos dos sistemas nacionais de saúde enfrentam os mesmos desafios - uma população cada vez mais envelhecida, uma prevalência crescente de doenças crónicas e a necessidade de fazer mais com menos dinheiro. Pessoalmente, não vejo isto a acontecer num futuro próximo, pois não penso que exista vontade política ou pública nos diferentes países europeus para uma integração completa dos sistemas de saúde e, além disso, seria uma tarefa maciça com resultados pouco claros. Esta fragmentação dos sistemas de saúde é frequentemente vista como um desafio através dos olhos de um cidadão que se desloca de um país para outro ou através da perspetiva de um investigador que tenta relacionar dados de vários sistemas diferentes para aprofundar as suas pesquisas. Mas também pode oferecer uma oportunidade e penso que é essa oportunidade que os sistemas de saúde europeus individuais irão aproveitar. Sistemas de saúde menores e mais ágeis proporcionam a oportunidade de testar e implementar novas abordagens, produtos e serviços de maneira rápida e dinâmica - e as melhores práticas podem ser incorporadas e disseminadas a partir daí. Central para isso é a capacidade de compreender melhor as diferenças entre os vários sistemas de saúde e ser capaz de avaliar onde está a funcionar e onde pode ser melhorado. A OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, desempenha um papel relevante aqui, com os seus relatórios "Health at a Glance", que apresentam uma análise comparativa do estado de saúde dos cidadãos da UE e do desempenho dos sistemas de saúde dos Estados-membros, dos países candidatos e dos países da Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA). É através desta partilha de informação que nos podemos comparar uns com os outros e aprender com as nossas abordagens individuais. Acho que é provavelmente aí que reside o futuro dos sistemas de saúde europeus no imediato - sistemas de saúde individuais e independentes que aprendem uns com os outros e, por fim, proporcionam os melhores resultados possíveis para os pacientes. Estamos a mover-nos nessa direção, mas ainda é necessário muito trabalho para conectar dados, partilhar práticas e, em última análise, beneficiarmos coletivamente das nossas experiências e aprendizagens individuais.

Quais são os maiores desafios que o sistema de saúde europeu enfrenta hoje em dia?
Penso que, de uma forma geral, podemos dizer que os sistemas de saúde europeus nos têm servido bem. Estão longe de serem perfeitos mas, na sua maioria, têm sido capazes de dar resposta aos cidadãos na perspetiva da saúde geral da população. No entanto, há um consenso geral de que os sistemas precisam de mudar e adaptar-se para permanecerem sustentáveis. A questão da sustentabilidade é de facto o principal desafio que os sistemas de saúde europeus enfrentam. Como referi, tendo uma população que vive mais tempo (as últimas estatísticas do eurostat apresentam uma expetativa de vida média na UE de 80,9 anos - um aumento de 3,2 anos em apenas 15 anos) e uma prevalência crescente de doenças crónicas dispendiosas, os sistemas estão financeiramente num ponto de rutura, e precisam de fazer continuamente mais com menos. O cerne desse desafio principal e que representa também uma barreira significativa para os sistemas de saúde, quando procuram abordar a questão da sustentabilidade, é a gestão da mudança. Construir o sistema de saúde sustentável do futuro exigirá mudança - mudanças ao nível organizacional, ao nível dos prestadores de serviços de saúde e ao nível dos pacientes. A mudança nunca é fácil e isto é particularmente verdade num setor como o da saúde, onde existem formas de trabalhar, comportamentos e mentalidades fortemente enraizados. Ao nível organizacional, os sistemas de saúde precisarão de alterar drasticamente a forma como são configurados e funcionam. Mais cuidados terão de ser prestados em casa e na comunidade, em vez de nos hospitais. Ao mesmo tempo, os reembolsos terão de mudar para modelos baseados em valor e resultados, em vez de modelos baseados em procedimentos e medidas quantitativas. Ao nível dos prestadores de serviços de saúde, as equipas terão de se adaptar às mudanças de papéis, uma vez que a tecnologia, e particularmente a inteligência artificial, passam a desempenhar um papel alargado no apoio ao diagnóstico e ao tratamento. Embora o comando caiba sempre aos prestadores de serviços de saúde, o seu papel passará a estar muito mais focado no envolvimento com o paciente, no apoio e assistência na travessia da economia da saúde. Isto implicará, também, mudar a educação destes prestadores. Os pacientes também terão de adotar novas tecnologias e confiar nas suas recomendações. O peso da doença resultante de estilos de vida pouco saudáveis ​​e ambientes nocivos tem de cair e os pacientes terão de desempenhar o seu papel nas estratégias de prevenção. Isto não é apenas um desafio para os pacientes, mas um desafio para todas as partes envolvidas no sistema. A mudança é inevitável, mas gerir essa mudança para proporcionar, positivamente, um impacto real é o principal desafio dos sistemas de saúde.

De que formas a inteligência artificial (IA) melhorará o sistema de saúde?
A saúde sempre foi uma indústria mais lenta do que as outras no que toca a adotar a mudança. Quando as vidas das pessoas estão em risco, é preciso ter a certeza de que a mudança que se está a fazer é boa e que vai impulsionar positivamente os resultados dos pacientes. Assim, embora a saúde esteja mais atrás que outras indústrias na adoção da IA, está a alcançá-la e isto realmente tem o potencial de mudar todo o cenário de muitas formas. Gosto de pensar nos benefícios da IA ​​na saúde com base em dois itens. Em primeiro lugar, a IA pode desempenhar um papel fundamental em tornar o sistema mais eficiente e reduzir gastos desnecessários, ao utilizar dados e algoritmos preditivos para apoiar as decisões da administração médica e otimizar o fluxo de trabalho. Em segundo lugar, pode ajudar os profissionais a fornecer cuidados de saúde mais eficientes, eficazes e personalizados, proporcionando melhores resultados para os pacientes, tanto no diagnóstico, como na seleção do tratamento e no próprio tratamento do paciente. O reconhecimento visual de padrões pode, por exemplo, fornecer resultados 5 a 10% mais precisos do que a média dos médicos. A combinação de algoritmos consensuais de especialistas com dados de registos médicos pode recomendar o tratamento mais adequado e personalizado para um paciente. Interfaces robóticas avançadas entre computadores e humanos, como a sutura automatizada realizada por robôs, podem reduzir os erros de operação e melhorar os resultados dos pacientes. Embora a promessa de que a IA possa transformar os sistemas de saúde seja real, a IA depende de um acesso contínuo a dados, e por isso um dos grandes desafios para a Europa é garantir um acesso responsável, rápido e justo a uma grande quantidade de dados através das suas fronteiras e isso é algo em que a EIT Health está a trabalhar bastante.

Pode dar alguns exemplos de inovações que promovem um sistema de saúde mais eficiente?
Algo central para o desafio de sustentabilidade que mencionei anteriormente é o papel que os ganhos de eficiência podem desempenhar na abordagem ao desafio. Estes ganhos de eficiência devem acontecer aos níveis da organização, dos profissionais e do paciente. O potencial impacto que receitas eletrónicas, agendamento eletrónico e telemedicina podem ter é bem conhecido. No entanto, muitos dos projetos apoiados pela EIT Health são inovações que também podem dar lugar a ganhos na eficiência. De um ponto de vista organizacional e do sistema, por exemplo, como mencionei anteriormente, precisamos mover os cuidados para mais perto de casa e para fora do dispendioso ambiente hospitalar. Um dos projetos que apoiamos, o Homecare@COPD, por exemplo, está a melhorar os cuidados intensivos em casa para pessoas com doenças pulmonares usando o feedback dos pacientes para melhorar o RAS-Q, o chamado "pulmão numa mochila" - o primeiro dispositivo portátil de assistência respiratória para o tratamento a longo prazo da doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC) que foi desenvolvido com o apoio da EIT Health. Este produto oferece a possibilidade de reduzir o dispendioso e difícil tempo de hospitalização de pacientes gravemente doentes. Do ponto de vista dos profissionais de saúde, as inovações precisam de apoiar os médicos a tomar melhores decisões. Outro dos projetos que apoiamos, o Stockholm3, desenvolveu um exame de sangue que deteta o risco de cancro da próstata agressivo, combinando cinco marcadores de proteína, mais de 100 marcadores genéticos, dados clínicos e um algoritmo proprietário. Este exame de sangue não invasivo reduz o número de biópsias desnecessárias em 50% em comparação com a atual prática clínica. Do ponto de vista do paciente, as inovações precisam de ajudá-lo a tomar decisões de saúde melhores e mais informadas, que reduzam a necessidade de intervenções dispendiosas posteriormente. Uma das empresas que apoiamos, a MediTuner, desenvolveu o AsthmaTuner, uma solução digital de autogestão para pacientes com asma. Esta solução pode fornecer ao paciente uma recomendação de tratamento automática, semelhante à visita de um médico, com base na atual função pulmonar do paciente e nos sintomas relatados, podendo dispensar a necessidade de uma ida ao médico ou hospital.

É seguro dizer que saúde e tecnologia são inseparáveis ​​e que a inovação não irá parar. Assim, qual é a mentalidade que todas as entidades relacionadas com o sistema de saúde devem adotar?
Penso que é claro que a inovação, e em particular a inovação apoiada pela tecnologia, nunca irá parar. A EIT Health acredita firmemente que tais inovações podem transformar os sistemas de saúde e, em muitos casos, fornecer resultados mais eficazes, eficientes e seguros para os pacientes. Para começar, precisamos de compreender o potencial que a inovação tecnológica pode ter. Temos de querer experimentar coisas novas e ter o sistema, os profissionais e os pacientes prontos e dispostos a adotar a inovação. A educação e formação têm aqui um papel a desempenhar. Mas devemos sempre garantir que não o fazemos apenas por fazer. Só porque podemos fazer algo isso nem sempre significa que o devamos fazer. A mentalidade que todos precisamos adotar é que a inovação tem de ser boa para o paciente e o que é "bom" também é algo que tem de ser definido em conjunto com os pacientes. A inovação não é necessariamente sempre boa e há sempre o potencial para que alguma inovação seja prejudicial. Por exemplo, se equiparmos um paciente com todos os tipos de capacidades para monitorizar diferentes funções do corpo, etc., sem lhe transmitirmos como interpretar todos esses valores, poderemos causar-lhe grande preocupação e ansiedade e aumentar as suas visitas ao médico de família ou às emergências. Ao mesmo tempo, muitas vezes há preocupações éticas na inovação tecnológica, particularmente na genética e, novamente, focarmo-nos no que é melhor para o paciente e para a sociedade é extremamente importante aqui. Finalmente, também precisamos de ser conscientes para que a inovação não se destine apenas àqueles que podem pagar por ela. Penso que os sistemas de saúde europeus devem procurar fazer com que as coisas novas e boas sejam acessíveis a todos. Esta é uma base importante que é desafiada à medida que os custos dos tratamentos (por exemplo, terapias genética) continuam a aumentar.

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