A saudade do futuro
A Rússia está fora de Festival Eurovisão da Canção, a Ucrânia é a favorita e Portugal canta a Saudade. Num comunicado, a organização eurovisiva anunciou que a exclusão foi baseada em preocupações de que uma entrada russa no concurso deste ano traria descrédito à competição: "Continuamos dedicados a proteger os valores de uma competição cultural que promova o intercâmbio e o entendimento internacional", refere-se.
Entretanto, no festival nacional francês, a apresentadora Laurence Boccolini iniciou e terminou em ucraniano, referindo que "mesmo que a Eurovisão não faça política, esta instituição tem valores. Acima de tudo, tem coração, um coração que esta noite vai bater pelo povo ucraniano, cujo sofrimento nos recusamos a silenciar. Esperamos que os nossos amigos ucranianos retornem ao seu país livre, as suas famílias e a paz o mais rápido possível. Hoje à noite, aqui, de todo coração com a Ucrânia".
O Festival nasceu para unir, após as tensões políticas na Segunda Guerra Mundial. Faz parte do espírito europeu. A maior mudança veio com a queda do Muro de Berlim. A política ganhou força na disputa e as alianças políticas sempre foram importantes. Apesar de ter uma regra de não tratar de política, mas de música, em toda a sua história a intervenção sociopolítica esteve sempre mais ou menos evidente, desde a defesa LGBTQ+ até às denúncias quanto às opções políticas dos Estados. Até Madonna o fez. A Eurovisão tornou-se na voz do inconformismo e da luta pela tolerância.
Apesar de manter o seu estatuto formal apolítico, o Festival tem sido o contrário. A propósito do conflito entre a Rússia e a Ucrânia, em 2014, este país venceu, em 2016, com "1944", uma canção sobre a deportação dos tártaros da Crimeia. No mesmo ano, a Arménia usou o centenário do massacre de 1,5 milhão de arménios no final do Império Otomano - um evento reconhecido como genocídio por muitos países europeus, mas que é contestado pela Turquia e pelo Azerbaijão - para levar uma canção controversa. Antes, em 2007, Verka Serduchka cantou "Dancing Lashia Tumbai", pela Ucrânia, com palavras sem sentido, cujo título parece significar "Dancing Russia Goodbye" e, em 2009, uma das músicas mais importantes a serem removidas da competição foi a entrada da Geórgia, sobre o conflito na região separatista da Ossétia do Sul. A Geórgia tentou recuperá-la em agosto de 2008, levando a Rússia a responder com uma invasão maciça. O conflito matou centenas de pessoas. A canção da Geórgia, chamada "We Don't Wanna Put In", foi descartada, porque os juízes consideraram que as duas últimas palavras do título da canção se referiam ao atual presidente da Rússia, Vladimir Putin. Em 2013, Dina Garipova foi a escolhida para cantar "What If", que não venceu por causa do jogo de bastidores entre países. A letra e a mensagem não coincidem com a prática política. "E se escolhêssemos enterrar as nossas armas?", diz a canção. É um pedido feito ao mundo sob o signo da Rússia. Putin tinha entrado como presidente no ano anterior, pela segunda vez.
O papel de Portugal já foi esse, designadamente nos anos 70, imediatamente antes e depois do 25 de Abril, sem grande sucesso eurovisivo, mas com canções expressivas para consumo interno. A nossa vitória, em 2017, falou de amor, ao ouvido de todos. A Rádio e Televisão de Portugal mostrou o que podia ser se não fosse o que é. No presente ano os coautores Maro e John Blanda transmitem conhecimento e talento e a canção transmite sofisticação, paz, esperança e conforto. "Saudade, Saudade" é uma pérola, simples e autêntica, tal como a voz de Maro, suave, por vezes quase a desaparecer, mas distinta. A mensagem foi propícia pelos tempos conturbados que se vivem, embora a canção não fosse criada tendo isso em conta, mas pela morte de um familiar da cantora. A construção idiomática bilingue em Inglês e Português não faz perder a alma e a identidade próprias de qualquer canção que fale de Saudade. E, desta vez, devemo-la cantar, também, para todo o mundo, sob o signo do futuro.
Investigador em Eurovisiologia