A rutura não é uma opção para as Nações Unidas
Numa reflexão minha aqui há dois dias, concluí que nas condições atuais uma reforma do Conselho de Segurança da ONU não é possível. Acrescentei, todavia, que isso não impede o sistema das Nações Unidas de tratar de muitas questões que são fundamentais para a cooperação e a coordenação internacionais. A minha mensagem foi clara: a ONU tem múltiplas dimensões positivas e desempenha, num grande número de áreas de interesse comum, funções indispensáveis. Por isso, não se deve cair no simplismo de dizer que a organização não serve para grande coisa e poderia, por isso, ser apagada da rede institucional internacional. Os Estados membros reconhecem a importância das Nações Unidas, das agências especializadas, dos programas e dos fundos de desenvolvimento, da coordenação humanitária, dos direitos humanos, e mesmo de muitas das atividades nos domínios da paz e da segurança.
É um erro, portanto, ter uma atitude negativa perante a ONU. É igualmente prova de um radicalismo primário dizer que o sistema é dominado pelos países ocidentais. Comecemos por olhar para o Conselho de Segurança, para ver dois dos cinco permanentes - a China e a Federação Russa - que não se consideram como integrantes do mundo ocidental. Depois, em cada continente, a maioria dos dirigentes, dos quadros e dos agentes são originários dessas regiões. Não era assim até há trinta anos. Com o tempo, a presença no terreno foi-se adaptando às novas realidades. Uma grande maioria dos quadros atuais começou a sua carreira ao nível local, nos escritórios de representação das distintas componentes das Nações Unidas e nos projetos em execução nos seus países de origem. Hoje, é bem mais fácil que um profissional africano ou latino-americano seja recrutado para trabalhar a nível internacional, que um europeu ou um norte-americano. Aliás, as universidades dos países desenvolvidos que ministram cursos superiores sobre relações internacionais, desenvolvimento e cooperação deveriam explicar aos candidatos a esses estudos que a porta de entrada nas organizações multilaterais é hoje muito estreita para quem vem do Norte Global. Está grandemente fechada.
Isso é verdade mesmo no caso das instituições financeiras internacionais. O Banco Mundial é de facto presidido por um norte-americano e o FMI por uma europeia, mas os postos de direção e de supervisão estão progressivamente a ser ocupados por especialistas vindos dos países em desenvolvimento. A Índia, por exemplo, está cada vez mais presente. O mesmo acontece com o Senegal, a Nigéria, a Argentina, o Chile, as Filipinas e outros. As instituições multilaterais, sobretudo a partir da década de 2010, têm estado a ser dotadas, e bem, de profissionais com raízes nas mais diversas partes do globo.
As grandes questões continuam a ser a falta de representatividade geográfica do Conselho de Segurança e o direito de veto. Nos debates desta semana na Assembleia Geral, esse foi um dos temas mais referidos. O próprio presidente Zelensky, quando na quarta-feira se dirigiu ao Conselho de Segurança, numa sessão especial sobre a Ucrânia, passou uma parte do tempo a refletir sobre a reforma do mesmo. Propôs, nomeadamente, que o direito de veto de um país agressor, condenado pela Assembleia Geral, embora seja membro permanente do Conselho, fosse suspenso, enquanto durasse a agressão. Para já, essa proposta não tem asas para voar, embora tenha uma justificação política muito forte.
Deveria ter lembrado, para reforçar a sua posição, que o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ ou Tribunal de Haia) havia ordenado à Rússia, a 16 de março de 2022, que suspendesse imediatamente as suas operações militares na Ucrânia. E que as decisões desse Tribunal, um órgão fundamental da ONU e parte integrante da Carta das Nações Unidas (Artigo 92), são de aceitação e execução obrigatórias. Qualquer país membro da ONU fica automaticamente abrangido pela jurisdição do TIJ. É uma disposição clara, mas tem um senão: quem tem direito de veto no Conselho de Segurança pode opor-se às decisões do Tribunal da Haia. Apesar de tudo, é importante fazer referência a esse Tribunal. E utilizar os seus julgamentos para frisar a importância do respeito pelo direito internacional. Esses são argumentos de grande valor diplomático, sobretudo nos discursos perante a Assembleia Geral e nos diferentes contactos bilaterais, com países como o Brasil e outros pesos pesados do Sul. Os valores e a lei têm de sobrepor-se à força dos invasores e à neurose dos ditadores.
Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral-adjunto da ONU