A revolução de 1383-1385 e a fome em Portugal
No dia 22 de outubro de 1383 morre o rei D. Fernando. O rei D. João I de Castela, casado com D. Beatriz, filha do falecido monarca e da rainha D. Leonor, com base no contrato de casamento de Salvaterra de Magos reclama para si a coroa portuguesa.
Os oponentes à fusão das duas coroas, encabeçados por D. João, Mestre de Avis, assassinam o conde Andeiro, em 6 de dezembro, nos paços da rainha D. Leonor, dando início ao processo revolucionário.
Insegura, a rainha D. Leonor vê--se obrigada a fugir, primeiro para Alenquer e depois para Santarém, de onde convida o rei de Castela a entrar em Portugal e em 13 de janeiro de 1384 renuncia o direito do regimento a favor do rei de Castela e de sua mulher.
Os portugueses dividem-se. A maioria opta pela rainha D. Leonor e pelo seu genro. Os revolucionários decidem apostar o futuro de Portugal defendendo Lisboa. Depressa se inicia o êxodo para interior dos muros. Os habitantes das redondezas e a população transportam para a capital os alimentos disponíveis.
Esta operação foi forçada a terminar em 30 de maio quando o exército invasor cerca por completo a cidade, tanto por terra como por mar. Fica assim vedada a ajuda exterior à capital portuguesa. Só de quando em vez, na calada da noite, algum batel oriundo do Ribatejo conseguia furar o bloqueio.
Com a ajuda da frota vinda da cidade do Porto, em 18 de julho, melhora a situação dos defensores, mas depressa são consumidos os alimentos por haver muitas mais bocas por satisfazer.
Como habitualmente acontece nos momentos de crise os mais pobres são os primeiros a sofrerem as suas consequências perniciosas. Na capital, as esmolas começam a escassear e a população mais carenciada deixa de receber as migalhas piedosas. Perante esta grave situação, os dirigentes lisboetas decidem expulsar os mais fracos, as prostitutas e os judeus.
De início são bem acolhidos, mas quando os castelhanos descobrem os verdadeiros motivos de expulsão proíbem-lhes de continuar a entrar no acampamento, sendo açoitados e de seguida compelidos a regressar para o interior da cidade.
Em Lisboa já quase não havia trigo à venda nem carne para comer e se às vezes algo se transacionava era muito pouco e extremamente caro. Matava-se a barriga de miséria comendo pão de bagaço de azeitonas, queijo das malvas e raízes das ervas. Nos locais onde se vendiam os cereais, as crianças e os adultos revolviam a terra à procura de grãos de trigo e de milho. Havia quem comesse ervas e bebesse muita água. De tanta fome passada, homens e crianças apareciam mortos e de barriga inchada.
Todavia, quando repicavam os sinos e se pedia a ajuda em defesa da cidade ninguém se queixava e até os frades e clérigos ajudavam.
As igrejas enchiam-se de crentes aos lamentos. Faziam-se preces fervorosas, mas a fome continuava a grassar em Lisboa.
O Mestre de Avis, como tinha de se manter firme na decisão tomada, fazia de conta que não escutava as queixas. Enquanto os defensores desesperavam, o rei de Castela mantinha-se firme e inaba-lável nos seus propósitos. Decidira só levantar o cerco quando fosse hasteada a bandeira branca de rendição.
O Mestre de Avis tinha plena consciência de que a população sacrificada atingira o limite do suportável. Só um milagre podia salvar Lisboa e a causa por eles defendida. E o milagre deu-se no dia 3 de setembro de 1384. As mortes e o aumento da intensidade da peste obrigaram o rei de Castela a levantar o cerco.
Hoje ninguém ignora que há fome, não só em Lisboa, como aconteceu há 629 anos, mas em Portugal inteiro.
Na altura os nossos líderes defendiam a capital com unhas e dentes porque tinham a certeza absoluta de que se Lisboa se rendesse Portugal inteiro cairia nas mãos de Castela. Lutava-se por uma causa, lutava-se pela independência nacional.
Apesar de saberem que existe fome, os atuais governantes continuam a pedir-nos sacrifícios e mais sacrifícios porque acreditam piamente que também agora o milagre vai acontecer:
- Vamos regressar aos mercados!
A maior parte da população portuguesa não sabe o que é regressar aos mercados e os pobres dos esfomeados perguntam:
- O regresso aos mercados vai matar a fome dos meus filhos lá em casa?