A revolta da manteiga

Berta Castilho, responsável pela empresa que produz «a melhor manteiga do mundo», teve a coragem de dizer «não» a um dos colossos da distribuição do país. História de uma mulher que não se deixa intimidar pelos «grandes».
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Ao completar 18 anos, o pai ofereceu a Berta Castilho a carta. Acto contínuo perguntou-lhe se queria um carro. Como o pai até era administrador de uma empresa, achou que pedir um BMW seria razoável. Veio encontrar à porta um 2 CV que o pai comprou a um funcionário da empresa por «três contos e meio» e que até estava a servir de galinheiro. Todo recuperado, com estofos novos e com a funcionalidade cabrio, até parecia um bom partido. «Agora, para andar, tens de meter gasolina. Andas se tiveres», disse-lhe o pai. «Não me restou outra solução que não fosse dar explicações», recorda Berta Castilho, uma mulher de armas que tem aguentado a sua empresa - Lacticínios das Marinhas, em Esposende - com determinação hercúlea, que faz dela uma verdadeira líder, mas que não deixa para trás os colaboradores. «Alguns têm quarenta anos de casa. Farei tudo para aguentar a empresa, pelo menos, até eles poderem reformar-se», garante. Quando se deu o 25 de Abril, Berta Castilho frequentava Engenharia Electrotécnica: «Deu-se o 25 de Abril e entretanto também me apaixonei e aproveitei as duas situações, deixei o curso e fui para o Brasil. Estive lá desde 1975 até 1981.»

Dois factores trouxeram a pequena empresa Lacticínios das Marinhas (com 27 trabalhadores apresentou resultados de um milhão e cem mil euros de facturação no ano passado) para a ribalta: viu ser classificada a sua manteiga como uma das 13 melhores do mundo e saiu das prateleiras das lojas do grupo Jerónimo Martins. Para muitos, este aspecto merecerá mais atenção que aquele outro, por ser entendido como uma afronta ao colosso da distribuição, mas Berta Castilho, com a experiência que a vida lhe confere, apenas dedica a atenção que o assunto merece: «Um negócio entre duas empresas privadas que têm as suas posições e que não se entenderam.» Ponto.

Entendeu a administradora da Lacticínios das Marinhas que devia colocar um anúncio no jornal, dando conta da ausência de determinadas estantes: «A única motivação que me levou ao jornal foi de dizer que deixávamos de vender nas lojas desse grupo e informar os consumidores que continuamos a existir. Não quisemos afrontar ninguém.»

«Não» à Jerónimo Martins

Na extrapolação de leituras, pode-se interpretar prazos de pagamento, condições de entrega de produtos e até campanhas, mas Berta Castilho mantém o tom firme e a postura. «No nosso caso, a proposta que foi feita não era viável. No caso dos outros que também são privados, não sei se estão lá porque é interessante. As grandes superfícies têm um papel fundamental, porque estão espalhadas por todo o país e são acessíveis a quase toda a população, são um cliente importantíssimo, mas quando não há entendimento não há negócio», sintetiza a gestora.

Na formação empresarial, Berta Castilho segue à risca uma máxima que o pai sublinhava: «Há dois tipos de problemas. Aqueles que dependem de ti e que deves fazer o possível por resolver da melhor maneira; e aqueles que não dependem de ti e em que não vale a pena estares a bater porque não os vais resolver. Nos dias de hoje parece esquisito, mas funciona. Essa é a minha filosofia de vida, porque acho que devemos ter tempo para tudo e temos de dar o melhor possível naquilo que estivermos a fazer.»

Dos anos no Brasil guarda muitas saudades da vivência que lhe conferiu um capital acumulado que lhe abre horizontes. «Do país e do povo. A forma de trabalhar e a postura são muito diferentes. Trabalha-se muito, mas vive-se, porque no fim de uma jornada de trabalho as pessoas juntam-se e vão a um bar, tomar qualquer coisa e conviver. Lá a vida é muito mais descomplicada. Uma pessoa aparece em casa de alguém à hora de jantar e senta-se à mesa e come aquilo que houver. Aqui já é um bocadinho falta de educação. Há outro formalismo.» Com a visão das realidades que o Atlântico separa, Berta Castilho diz que falta a Portugal «começar por cima e acabar em baixo e começar por baixo e acabar em cima. Falta uma reviravolta e um caminho por descobrir. E não é organização, porque isso é para os orientais e para povos que precisam dela, como os alemães. Há povos como nós, como os italianos ou os brasileiros que até trabalham bem em desorganização, porque é o desenrasca e isso nem sempre é uma coisa má, desde que bem orientada».

«Precisamos de ter mais garra»

Para quem trabalhou num dos maiores laboratórios de fotografia da América Latina, em São Paulo, e no regresso a Portugal passou pela Fuji antes de abraçar o projecto da família, um momento como que representou a fotografia não significa estagnação. Berta Castilho regressou às origens, em 1991, com a principal preocupação de elaborar um projecto para adequar a empresa às exigências de um mercado comum europeu e às normas de higiene e segurança alimentar. «A minha aposta sempre foi de manter uma certa tradição e deixar que os produtos se impusessem pela sua qualidade. No alimentar faz-se muita campanha boca-a-boca», vinca. Conseguiu que a Lacticínios das Marinhas fosse a primeira empresa portuguesa certificada em segurança alimentar: «Como? Envolvendo toda a gente, alguns sem estudos, falando a mesma linguagem e a dar ideias. Aqui é que a civilização ocidental devia conhecer a japonesa. Lá, nenhum gestor chega ao cargo sem começar por baixo.»

Na permanente comparação com outras culturas que bem conhece, Berta Castilho lamenta que os portugueses «não tenham um pouco mais de garra para seguir em frente. Não temos orgulho naquilo que fazemos. Faz-me grande aflição o facto de as nossas crianças não saberem o hino nacional. É importante que não se percam as referências». E é nessa linha que os produtos comercializados pela Lacticínios das Marinhas pretendem seguir uma sequência lógica. «O meu pai teve imensos problemas, porque o queijo que começou a comercializar não era redondo, nem vermelho. Era o queijo prato, ainda por cima com baixo teor de matéria gorda. Ele era teimoso.»

Essa teimosia havia de colher frutos, quando alguns médicos começaram a aconselhar o consumo do queijo: «Começou a ser experimentado por nutricionistas e médicos, a ser consumido por pessoas com problemas de saúde, porque não leva revestimento externo, ou seja, não leva conservantes ou antioxidantes, e é de alta digestibilidade.»

Ante os novos desafios que se erguem, Berta Castilho encontra nos exemplos do passado o suporte para o futuro: «Tudo aquilo que fiz na vida, mesmo as grandes asneiras, voltaria a fazer, porque aprendemos com os erros. Na minha ida para o Brasil, apesar de ter passado grandes dificuldades, inclusive fome, acho que cresci em dois ou três anos aquilo que nunca cresceria aqui em dez ou vinte. Uma pessoa quando está só tem de se fazer à vida, quando tem a família por perto, sente-se apoiada e tende a não seguir o seu caminho.»

O que é nacional é bom

Berta Castilho tem grandes esperanças no florescimento da economia nacional, até porque «as pessoas estão mais vocacionadas para ouvir dizer que o que é nacional é bom». Esta postura segue-se a uma fase em que «não era politicamente correcto chamarmos as pessoas para o consumo de produtos nacionais. Porque estávamos num mercado global e era importante chamar as pessoas para a globalização». Hoje em dia, já há campanhas em sentido contrário e um apelo à produção nacional, com grande procura de produtos tradicionais: «Já se começa a apelar para o que temos, até porque é um conceito económico simples de perceber: se estou a consumir produtos nacionais estou a defender postos de trabalho em Portugal, hipoteticamente o meu.»

A empresária de Esposende vê na agricultura um caminho a seguir, «porque já fomos auto-suficientes em termos de produção e neste momento não somos. Incentivos ao abandono foram imensos e os incentivos ao cultivo são difíceis. Criou-se uma dicotomia que mesmo para quem queira trabalhar é muito difícil. Não digo em termos de subsídios, porque há inúmeras formas de ajudar, como aconselhamento técnico. O escoamento de produtos podia ser outra das ajudas», defende.

A melhor manteiga do mundo

A manteiga das Marinhas chegou ao restrito grupo das 13 distinguidas pela revista Wallpapper, quando a correspondente em Lisboa encontrou o produto no clube gourmet do El Corte Inglés. «Pediu para enviar algumas embalagens para Inglaterra, para fazer fotografia. Confesso que nem dei inicialmente grande importância, mas em Junho de 2008 foi um orgulho ver a nossa manteiga entre as 13 melhores do mundo.»

Revestida a papel vegetal, com o sabor que só a nata confere (retirada do leite que segue para o queijo magro), a manteiga das Marinhas surge à mesa dos hotéis The Yeatman, em Gaia, e no Vintage House, no Pinhão, o que lhe confere estatuto e visibilidade. A forma artesanal como é produzida passa pelo recurso à velha batedeira industrial «que vai sendo consertada de forma artesanal, por uns curiosos que aqui temos, porque já não há peças», destaca Berta Castilho.

A manteiga das Marinhas acaba por ser o produto com maior visibilidade da fábrica de lacticínios que nasceu em 1939, da concentração de pequenos fabricantes de manteiga da região e que seria assumida pela família Castilho.

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