A República morreu, longa vida à República

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A crise de regime veste múltiplas máscaras, umas mais verdadeiras do que outras, todas igualmente úteis ao disfarce.

Para a dita sociedade civil, há uma crise de qualidade nos partidos, patente no défice de mérito dos nossos políticos em funções. Para a classe política, há uma crise no setor empresarial, visível na sua preferência pelo Estado como agente económico e no modo como responsabilizam os patrões, por exemplo, pela má aplicação dos fundos europeus que eles --os políticos -- administraram. Para os empreendedores, há um excesso de pressão fiscal e burocrática que nem o primeiro-ministro, que é socialista, desmente. Para a esquerda, há uma crise na direita, que se deixou contaminar ou conquistar pelos populismos da sua família, tratando-se de uma ameaça ao sistema democrático. Para a direita, há uma ausência de crescimento nos anos de governação à esquerda que a responsabiliza pelo atraso português. Nenhuma está inteiramente enganada. Todas têm um fundo de verdade. A única singularidade da crise do regime é ser tão pouco falada apesar de tão transversal.

A direita, órfã de protagonistas políticos, prefere argumentos económicos. A esquerda, que não tem outra coisa que não politiquice, resume-se a isso mesmo. Uma maioria parlamentar do PS e um líder ávido de reformas talvez mudassem isso. Mas nem uma nem outra, olhando para o historial dos sete anos de costismo, parecem remotamente possíveis.Aceitemos, então, pela soma das partes, que a República está doente, comatosa e excessivamente gasta para algo nascido há menos de cinquenta anos. Aceitemos que a estagnação não é somente estatística, mas política; que a falência, mais do que ideológica ou orçamental, é estratégica; que a responsabilidade é geral e que a expiação será forçosamente coletiva. Aceitemos que o regime se encontra diante de um impasse em que a inércia agravará apenas os problemas que todos identificam em cada um dos que o compõem. Aceitemos que a revitalização é uma urgência ou que a rutura rapidamente se tornará inevitabilidade. Aceitemos que o combate contra o extremismo e que a luta contra a miséria estão ‒ ou deveriam estar ‒ entrelaçados e não em campos opostos.

É este, resumidamente, o paradoxo do regime: sem lideranças que o façam progredir, sem movimentos capazes de o refundar, todos os que apontam o seu esgotamento esquecem que a crise de vocações que o afundou é a mesma que impossibilita que dele surja outro.

A direita, graças ao Chega e à sua "Quarta República", é mais associada a essa agenda de mudança de regime, mas o PSD de Rio também pediu "um novo 25 de Abril" e a retórica da Iniciativa Liberal nunca escondeu os seus laivos de força antissistema. Em Portugal, se o socialismo é hoje "a situação", a direita é cada vez mais "a revolução" ‒ e nem uma coisa nem outra representam boas notícias. Dito de outra maneira: é facto consumado que a área não-socialista não aprecia o regime em vigor. A questão é que a esquerda, do outro lado, pouco faz por preservá-lo. Não tanto pela ortodoxia anticapitalista do PCP ou do Bloco de Esquerda, mas pela irresponsabilidade‒ doutrinária e prática ‒do atual Partido Socialista.
Desde renegar ao seu legado no 25 de Novembro a ter candidatos que foram condenados por terrorismo em democracia, saudando a pandemia como vitória nacional pelo caminho, o PS precisa de entender o seguinte: se quer salvar o regime ‒ isto é, a si próprio ‒ tem de parar de lhe cuspir na cara.


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