A república de Atatürk

O fim do Império Otomano deixou os turcos confinados quase só à Anatólia, mas Mustafa Kemal fundou uma república de vocação europeia. O maior legado é o laicismo, que Erdogan tem contrariado. Em 2023, data do centenário, será tempo de balanço. Leia aqui o Perguntas & Respostas <b>por Leonídio Paulo Ferreira</b>
Publicado a
Atualizado a

Porque é a Turquia assim tão importante para o Ocidente? Tem que ver com ser um país que tanto é europeu como asiático?

› Fazer a ponte entre a Europa e a Ásia garante à Turquia um valor estratégico impar, basta pensar que Istambul é a única cidade do mundo que está em dois continentes e que o Bósforo, que a atravessa, é o estreito que faz a ligação entre o Mediterrâneo e o Mar Negro. Mas a Turquia é também excecional por causa do tradicional laicismo, o qual, associado a uma prática democrática duradoura mesmo que com altos e baixos, a torna excecional entre os países de maioria muçulmana. Não é por acaso que é membro da NATO desde 1952, três anos apenas depois da fundação da aliança militar liderada pelos Estados Unidos.

Único país muçulmano da NATO e também segundo maior exército, não é o que se costumava dizer?

› Sim, mas a primeira parte deixou de ser verdade em 2009 com a adesão da Albânia. Quanto a ter as segundas mais poderosas forças armadas da NATO, depois dos Estados Unidos, corresponde à realidade desde que se esteja a falar de efetivos militares (um milhão), pois Reino Unido e França têm menos tropas mas possuem armas nucleares.

Qual o peso dos militares na condução do país?

› É enorme desde ainda antes da fundação da República da Turquia em 1923. Com o Império Otomano derrotado no final da Primeira Guerra Mundial, várias potências decidiram a partir de 1918 retalhar o território turco entre si, com a Grécia a ficar com a costa, onde havia uma tradicional comunidade grega, a Itália e a França a criarem zonas de influência na península da Anatólia, e ainda os britânicos e os russos de olhos em Constantinopla, a atual Istambul, por causa do controlo do Bósforo. A reação turca nacionalista veio de militares como Mustafa Kemal, mais tarde chamado de Ataturk ou "pai dos turcos". Numa verdadeira guerra de independência, conseguiu repelir os ocupantes e forçar as potências a negociar, fez depois uma troca de populações com a Grécia e por fim criou a moderna Turquia, com capital em Ancara, coração da Anatólia.

Ataturk continua hoje um herói para os turcos?

› Para a esmagadora maioria sem dúvida. Não só lhes deu um país quando parecia que os turcos iam ser a única nacionalidade do extinto Império Otomano a ficar sem Estado, como lançou um processo de modernização que confirmou a vocação europeia da nação. Novo código civil inspirado no da Suíça, a adoção do alfabeto latino, os direitos iguais para as mulheres (uma das filhas adotivas de Ataturk foi piloto de aviões de guerra). Claro que há quem diga que exagerou ao proibir o uso do lenço às funcionárias públicas e a obrigar os homens a trocar o fez pelo chapéu de abas, mas o resultado foi que à data da sua morte, em 1938, a Turquia era já um país sólido, moderno e capaz de servir de inspiração a outros.

Mas depois da morte de Ataturk os militares habituaram-se a fazer golpes sempre que a liderança política desagradava, certo?

› Sim, sobretudo se sentissem que a extrema-direita ou a extrema-esquerda estavam a destabilizar o país perante a passividade dos governos civis. E também se sentissem o modelo laico ameaçado. O último golpe de sucesso foi em 1980, seguido de um período ditatorial até à devolução do poder aos civis. Houve outro golpe posterior, mas muito discreto, para travar em 1997 a ascensão de um partido islamita.

O AKP, que governa desde 2002, é islamita. Como foi tolerado pelos militares?

› Tem sido um braço de ferro tremendo. Basta lembrar que o líder do AKP, o atual presidente Recep Erdogan, foi destituído de autarca de Istambul e preso por declamar um poema onde falava de minaretes. Mas a popularidade do partido e a estratégia deste em se moderar e criar uma espécie de islamo-conservadorismo análogo à democracia-cristã obrigou os generais a manterem-se calmos. Acrescente-se que a União Europeia, de início bem impressionada por Erdogan, pressionou muito os militares turcos para que respeitassem os resultados das urnas e permanecessem nos quartéis.

Então porquê tanta dificuldade da Turquia em ser admitida na União Europeia?

› Por causa de uma soma de medos. Há países que recusam ver a Turquia como europeia, pois só 3% do território fica a ocidente do Bósforo. Outros, não confiam num país cheio de problemas por resolver com os vizinhos. Há quem pense ainda nas ofensivas otomanas nos séculos XV, XVI e XVII (em 1683 cercaram Viena) e receie uma invasão muçulmana. E por fim há quem duvide que a União Europeia possa integrar um país de 80 milhões de habitantes sem ter de pagar demasiado para minorar o atraso económico e ainda ter receber uma vaga imensa de imigrantes.

Que problemas por resolver com vizinhos tem a Turquia?

› Há a questão das águas territoriais no Egeu que cria tensão com a Grécia, há a presença militar desde 1974 no Norte de Chipre, há ainda o velho diferendo com a Arménia sobre a matança de 1915 feita pelos otomanos e que a moderna Turquia recusa ser um genocídio. A estes se somam os recentes problemas com a Síria (dos refugiados ao terrorismo) causados pelo apoio de Erdogan aos rebeldes que desafiam o regime de Bachar al-Assad. Já para não falar na questão interna do separatismo curdo do PKK no sudeste da Anatólia.

Em 2023, celebra-se um século de república. Que balanço se faria se fosse hoje?

› O golpe fracassado, os tiques autoritários de Erdogan, a guerra reacendida com o PKK e mesmo o fracasso da diplomacia neo-otomana são sinais preocupantes. Mas ao mesmo tempo a sociedade civil turca é forte, a economia tem resistido a todos os abalos políticos e permite ao país estar no G20, e a democracia persiste como matriz. Sabe-se que Erdogan tem três grandes desejos: que a presidência se torne mesmo executiva, que o voto lhe permita chegar ao centenário como líder e que até lá a economia turca ultrapasse a fasquia do bilião de dólares (sim, o trillion anglo-saxónico). Para isso, terá de aproveitar esta tentativa de golpe não só para punir os mandantes como para repensar a ofensiva contra os valores laicos (que divide os turcos), colaborar com americanos e europeus para resolver o caos sírio e ainda encontrar uma fórmula para voltar ao diálogo de paz com o PKK. Se o conseguir, e isso não é nada certo, em 2023 seria quase tão celebrado como Ataturk.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt