A relatividade do frio
Eles dançam. Eles dançam no frio e na humidade. Eles aprendem passos e coreografias, exercícios tão difíceis. Eles continuam, caem e levantam-se obstinadamente. Eles estão com frio. Estes são os alunos da Escola de Dança do Conservatório Nacional de Lisboa. Há uma semana, este frio e todo os tipo de outras disfunções - amplamente divulgados na comunicação social - levaram os aprendizes de bailarinos a deixar os sapatos num canto: fizeram greve, para obter melhores condições para treinar como deve ser. A dança, como sabemos, é um exercício de alta acrobacia, que consiste principalmente em sofrer muito. Mas agora à tortura infligida nos pés, ao alongamento dos músculos e à monotonia do treino acrescentou-se o frio penetrante, a humidade carregada de miasmas que escorre pelas paredes. É uma casa de correntes de ar essa escola: de paredes ausentes ou de janelas que não fecham. É verdade que o prédio tem mais de 250 anos, que serviu de cozinha aos operários do marquês de Pombal que reconstruíram Lisboa após o terramoto de 1755. Mas a insalubridade e o frio que reinam na escola de dança não são fenómenos novos e isolados. Todos os edifícios pombalinos não possuem aquecimento.
Com um casaco em tons de púrpura, um boné a tapar as orelhas, cachecol e luvas bege, a turista possui a panóplia completa. A sua roupa é mais adequada para uma estação de desportos de inverno. Seguramente consultou as previsões meteorológicas que anunciavam frio. Na realidade, o termómetro de uma farmácia na Baixa de Lisboa mostra 15 graus. E observar a dama de púrpura faz-me sofrer: eu que fiz slalom entre muitos turistas, apressando-me para resolver assuntos, suando no meu casaco normal para a época, nem imagino o calor por baixo daquele casaco bem hermético e do lindo boné de lã na cabeça da minha turista. Ninguém lhe explicou que aqui o frio é relativo? Para ter a certeza, consulto as previsões de temperatura do IPMA, o Instituto de Meteorologia, que anunciam mínimas entre 7 e 9 graus e máximas entre os 14 e 16. Frio?, vamos concordar, não é nada comparável com o inverno francês, por exemplo. Mas aqui a diferença está no aquecimento. Na verdade, na ausência de aquecimento. Todos os estrangeiros estranham: não há aquecimento nos apartamentos, muito pouco nas lojas e nunca em autocarros. Para fazer o quê? O tempo é fresco - pronto. OK. Frio, se alguém prefere - que se sente apenas em alguns dias por ano em Lisboa, a cidade abençoada que fica à beira-rio.
Sinto-me sempre comovida quando penso nos funcionários das repartições pública, das empresas privadas, sentados durante todo o dia em salas com correntes de ar, a resistir estoicamente à semana anual do verdadeiro frio. Nas redes sociais e fóruns de discussão, os franceses informam-se sobre as melhores soluções para aquecimento, trocam dicas sobre as melhores técnicas, interrogam-se sobre as lojas para comprar um aparelho elétrico ou a gás.
Para constatar afinal que tudo isso será inútil em apartamentos sem isolamento térmico. Estes poucos dias de frio no ano podem envenenar a vida, não vamos duvidar disso. E em alojamentos locais o pequeno aquecedor a óleo não consegue aquecer a atmosfera. Esta é também a arte de viver em Lisboa: descobrir a relatividade do frio. Podemos consolar-nos com essas belas imagens de Bragança (Trás-os-Montes) coberta de neve, onde o frio não é apenas uma decoração de postal.
Lembrei-me desta observação de um jornalista estrangeiro depois de um aumento da mortalidade em Portugal no inverno de 2012, no meio da crise económica. Ele afirmava que as pessoas morreram porque não tinham dinheiro e não conseguiam aquecer-se. Naquele ano, houve uma epidemia de gripe na Europa: França, Bélgica, Espanha e Portugal tiveram surtos de mortalidade. Foi realmente a gripe a responsável pelo aumento da taxa de mortalidade: quase nunca houve aquecimento em Portugal, exceto as lareiras. Contrariamente à crença popular, não é o frio sozinho que explica a propagação do vírus da gripe, mas o modo de vida que adotamos na estação fria. Confinamento e promiscuidade para aquecer reforçam os agrupamentos de fontes de contágio: nós mesmos, seres humanos.
Esperemos que neste ano a epidemia não se propague e agrave rapidamente.