A regra dramática e a nova exceção
Eis um pormenor: realizado por Maggie Betts, The Burial é mais um filme que surge diretamente numa plataforma de streaming (Prime Video) sem que os respetivos responsáveis lhe atribuam um título português. O pormenor é secundário, mas sintomático. Para lá da banalidade das informações prestadas na plataforma, tudo se passa como se o marketing, com todos os seus meios técnicos e a sua inteligência social, não distinguisse um determinado filme de qualquer outro... Aliás, a indiferença é tal que até mesmo o facto de os intérpretes principais - Jamie Foxx e Tommy Lee Jones - serem personalidades previamente "oscarizadas", apesar de essa ser uma informação que consta nas notas do Prime Video americano, não surge na respetiva "tradução" portuguesa.
A ironia tem algo de amargo, já que estamos perante um filme bem interessante. Provavelmente, há três ou quatro décadas, antes de terem nascido muitos dos profissionais que, agora, concebem e colocam em prática os valores dominantes do marketing, contaminando todo o funcionamento do mercado, The Burial (à letra: "O Funeral"), ainda que não merecendo menosprezo, seria encarado como um objeto mais ou menos rotineiro. Agora, surge como uma curiosa, subtil e inteligente exceção.
Porquê? Porque já poucos arriscam fazer um clássico drama de tribunal, não apenas "copiando" uma matriz académica, mas sabendo colocar em cena as muitas ramificações sociais e políticas que os seus elementos podem envolver - lembremos, justamente, essa outra exceção que é Os 7 de Chicago (2020), de Aaron Sorkin (Netflix).
Esta é a dramatização da história verídica de Jeremiah O"Keefe (Tommy Lee Jones), proprietário de uma agência funerária em dificuldades financeiras. Quando o grupo Loewen, uma poderosa rede de agências funerárias dos EUA, tenta comprar a sua empresa, O"Keefe e o advogado Willie E. Gary (Jamie Foxx) irão expor a perversidade financeira do potencial comprador e, sobretudo, a prática, ao longo dos anos, de negócios muito suspeitos...
Digamos, para simplificar, que tudo isto se passa em meados da década de 1990, no Sul dos EUA (Mississippi) e que as tensões sociais, latentes ou explícitas, se reflectem também através do facto de O"Keefe, um branco, ter como advogado um afro-americano... O que é tanto mais importante na dinâmica narrativa de The Burial quanto o filme está longe de se submeter às normas do politicamente correcto que condicionam tantas produções actuais (muitas delas também "perdidas" no streaming) - eis um genuíno drama legal com laços criativos com a tradição liberal de Hollywood.
Vale a pena acrescentar que esta é a segunda longa-metragem de ficção de Maggie Betts. A primeira, Noviciate, perturbante retrato da vida no interior de um convento de freiras em meados da década de 1960, marcada pelos ecos do concílio Vaticano II, valeu-lhe um prémio de revelação no Festival de Sundance de 2017 - consultamos as informações que acompanham The Burial, fazemos click no seu nome e descobrimos que a sua ficha biográfica não existe...