A reforma da Defesa e da estrutura superior das Forças Armadas

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A reforma da estrutura superior das Forças Armadas (FA) promovida pelo atual Ministro da Defesa Nacional (MDN) tem sido objeto de acalorada discussão. Como muitos debates em Portugal, também este tem o "mérito" de se consumir em questões marginais. Devemos, antes de mais, interrogar-nos se depois desta reforma as FA sairão mais reforçadas e operacionalmente mais capazes.

Se esta reforma pretende adotar as melhores práticas, como anuncia, fazendo o que de melhor fazem os nossos parceiros e aliados, devia ter começado por fazer a reforma da defesa e não a da estrutura superior das Forças Armadas. Esta última seria integrada e uma consequência da primeira. Esta iniciativa em que o MDN está tão empenhado não conduz à criação de um Estado-Maior de Defesa (EMD), nem de um Chefe de Defesa (CHoD), como acontece nos países considerados referências. Tal ousadia implicava mudanças estruturais significativas no Ministério, que o MDN não tem coragem para fazer. Penso perceber a origem desta falta de ousadia.

Tal arrojo permitiria, por exemplo, terminar com a duplicação de missões entre o Estado-Maior-General das Forças Armada (EMGFA) e a Direção-Geral de Política de Defesa Nacional (DGPDN), e fundir estes dois organismos. Muito haveria a dizer neste capítulo. A alteração mais importante causada pela criação de um EMD prende-se com o protagonismo e a relevância que um CHoD passaria a ter na estrutura da defesa.

A criação de um EMD poderia levar a que a DGPDN e a Direção-Geral de Recursos da Defesa Nacional (DGRDN) ficassem sob a alçada do CHoD, algo insuportável para o poder político, que passaria a enfrentar maiores dificuldades para controlar plenamente o "sistema". Seria mais difícil contornar a CRESAP e introduzir os seus apaniguados no aparelho. Seria mais complicado nomear Diretores-Gerais (DG) inabilitados para os cargos, como, por exemplo, nomear DG que não falem inglês para funções onde é crucial dominar a língua inglesa. E seria assim, também mais difícil, controlar a Inspeção Geral de Defesa Nacional (IGDN). Provavelmente com um EMD, a opinião pública já saberia porque é que as obras do Hospital Militar de Belém resvalaram para o triplo do valor inicialmente estimado, assim como outras decisões financeiramente inconvenientes.

A opção deliberada de não seguir as melhores práticas, apesar de o apregoar, transportam-nos para o aludido controlo democrático das FA, uma forma airosa de, sob o chapéu da legitimidade democrática, encapotar o controlo da estrutura da defesa pelos amigos, uma prática que não só mina a democracia, como levanta profundas interrogações éticas.

Uma vez desmontado o argumento das melhores práticas, passemos então ao da eficácia e da eficiência. Em que domínios se pensa que esta reforma vai aumentar a eficácia e a eficiência das FA? Convém lembrar que a Força de Reação Imediata é única situação em que as FA se envolvem nacionalmente ao nível conjunto. O conceito "conjunto" aplica-se ao nível operacional, e com esforço ao nível tático com unidades de escalão elevado. Nunca ao nível das unidades de escalão companhia e batalhão, os escalões a que Portugal destaca forças. A centralização de poder que agora se vem propor pode melhorar a rapidez da resposta operacional. Mas apenas isso. Nos restantes aspetos é um exercício funesto. Os aspetos positivos estão longe de superarem os negativos.

Uma avaliação do mérito da iniciativa legislativa em causa exige respostas inequívocas a algumas questões incontornáveis. Por exemplo: por que é que o Conselho Superior Militar (CSM) deixa de ser um órgão de Estado diretamente responsável pela defesa nacional? Por que é que o conceito estratégico militar, presentemente elaborado pelo Conselho de Chefes de Estado-Maior (CCEM), passa a ser elaborado apenas pelo CEMGFA? Qual a razão para as missões específicas das FA elaboradas com base num projeto do CCEM passarem agora a ser elaboradas com base num projeto do CEMGFA? Que motivos levam a que o sistema de forças elaborado com base num projeto do CCEM passe a ser responsabilidade apenas do CEMGFA? Alguém que explique de modo claro quais os benefícios em passar aquelas prerrogativas de órgãos colegiais para o poder de uma única pessoa, e em que é que essa transferência de competências vai aumentar a eficácia e a eficiência do funcionamento das FA.

Percebemos as razões destas opções não terem sido inicialmente explicadas aos Chefes Militares, uma vez que tiveram conhecimento delas na véspera da reunião do Conselho Superior de Defesa Nacional, onde era suposto pronunciarem-se sobre as suas virtudes. Mas já passou tempo suficiente para ouvir da boca dos responsáveis uma explicação. Muito haveria ainda a inquirir. Contudo, não podemos deixar de nos interrogar porque é que os Chefes de Estado-Maior dos Ramos são excluídos do processo de decisão em matérias como o planeamento estratégico de médio e longo prazo, ou como a estratégia genética e estrutural, as quais não requerem nem exigem respostas rápidas, ao contrário das operações militares, onde a velocidade pode ser um aspeto diferenciador.

Será que o MDN tem presente as consequências da centralização em matéria orçamental, excluindo uma vez mais os CEM? Será que tem consciência das tensões corporativas que está a alimentar com essa decisão, da caixa de Pandora que vai abrir? O mesmo se aplica à Lei de Programação Militar e à Lei de Infraestruturas Militares. A ser aprovado o diploma em causa, o primeiro teste ocorrerá já no próximo ano durante a revisão da LPM. Um pensamento maturado sobre estas matérias desaconselha vivamente a concentração da decisão numa pessoa inibindo um processo negocial genuíno. O sistema de checks and balances em vigor, com a negociação que envolve, apesar das vicissitudes que encerra, tem provado ser eficaz e eficiente. Não se percebe a vantagem de o substituir por um regime sujeito ao livre-arbítrio de uma pessoa.

Não faz sentido concentrar numa pessoa um leque tão alargado de poderes. É perigoso e desnecessário. Não se traduz em benefícios. É abrir as portas à autocracia e ao despotismo, sintomas já noticiáveis sem a lei ter sido ainda aprovada. Por algum motivo os Serviços de Informações encontram-se individualizados organizacionalmente, opção que aparentemente não traduz um arranjo organizacional eficiente. Imperativos de outra natureza assim o justificam.

Alguém deve ainda explicar a singularidade, de se passar a rede de adidos militares para a dependência direta e funcional da DGPDN, quando faz todo o sentido mantê-la na cadeia de comando militar trabalhando em estreita coordenação com os serviços de informações militares. Esta proposta, além de não se encontrar em linha com as melhores práticas dos nossos parceiros e aliados, baseia-se numa justificação falsa.

Dito isto, e mais havia a dizer, tem de ficar claro que esta reforma não fará as FA darem o salto em frente. Não vai melhorar o seu output operacional, nem as suas capacidades. Depois da sua aprovação (a acontecer) e do foguetório mediático que lhe seguirá, as fragatas continuarão encostadas sem dinheiro para a manutenção e combustível, o arsenal do Alfeite continuará com o modelo de gestão autofágico e comatoso conhecido por todos. Situações semelhantes continuarão a ocorrer nos outros Ramos. Escusa, por isso, o MDN de vender esta reforma como a reforma do século, porque não o é e está longe de o ser.

Para que isso acontecesse, seria necessário um investimento em tecnologia e capacidades militares. Como é hábito em Portugal, esta "reforma" não tem um custo associado. Não sabemos quanto é que vai custar aos cofres do Estado. Inferir, sem fazer este exercício, que vai melhorar a eficiência, lembra-nos o ditado popular: presunção e água benta, cada um toma a que quer. Ainda hoje não se sabe quanto custou (nem quanto está a custar) a reforma levada a cabo há 15 anos no Exército, em que muitas decisões por inexequibilidade tiveram de ser revertidas.

Uma vez que o MDN insiste nas melhores práticas levadas a cabo por parceiros e aliados, não poderia deixar de lhe sugerir duas: em primeiro lugar, promover uma "Revisão Estratégica de Defesa" e com base nela elaborar um "Livro Branco de Defesa", para sabermos às quantas andamos e para onde vamos; em segundo lugar, que os serviços do seu Ministério façam os anuários estatísticos de Defesa. Estamos em 2021, e o último feito é de 2016. Esperemos que isto não seja um indício técnico da qualidade de funcionamento do seu ministério. Quando não se sabe o que fazer inventa-se. Ou antes, muda-se o organigrama para ficar quase tudo na mesma.

Major-general (na reserva)

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