A raspadinha do património
A designada raspadinha do património suscitou uma polémica em torno, basicamente, da questão de saber se, por um lado, faz sentido o Estado incentivar um consumo aditivo com forte impacto nas classes sociais baixas e, por outro, se um bem público como o património não merece uma outra dignidade no seu financiamento.
Essa discussão tem escamoteado uma outra, politicamente relevante. Porque motivo relativamente a esta nova fonte de financiamento para a Cultura foi possível inscrevê-la no Orçamento de Estado, assegurar dotação exclusiva a fins patrimoniais e fazê-lo mesmo sem alterar o regime de distribuição das receitas dos Jogos Sociais, quando para o Desporto nenhuma das propostas apresentadas - que não invocava a criação de um novo jogo social ou uma dotação exclusiva, mas tão só a redistribuição de um percentual de receita consignada ao desporto a gerir pelo IPDJ, IP para mitigar o impacto devastador da crise no desporto federado - teve acolhimento positivo?
O motivo invocado para não acolher qualquer das propostas apresentadas pelo sector do Desporto foi o de que alterar o regime de distribuição acarretaria custos para os restantes beneficiários, o que não seria oportuno suscitar. Argumento que no caso da raspadinha do património não foi considerado relevante.
O traço que esta situação evidencia é a de um tratamento político bastante distinto dado ao financiamento público dos setores da Cultura e do Desporto, há muito evidente e agudizado no período de pandemia. E aqui, mais do que a retórica governamental, os factos falam por si.
Cultura e Desporto são, de há muito, objeto de financiamento das receitas recolhidas nos Jogos Sociais. O Desporto desde a sua criação, com o Totobola, a Cultura anos mais tarde e beneficiando já da integração na órbita dos jogos sociais de outras modalidades de jogo, mormente no âmbito das responsabilidades das concessões de jogos de fortuna e azar.
O tempo tem acentuado uma perda da influência do Desporto, incluindo na governação da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a quem o Estado entregou o monopólio da gestão dos Jogos Sociais, ao arrepio de várias jurisdições europeias, onde a criação e o modelo de governação das lotarias nacionais tem profundas raízes e ligações ao desporto, desde logo pelo reconhecimento de que inúmeras apostas e produtos de jogo só existem porque existe quem, a montante, cuide de organizar, regular e desenvolver as competições desportivas objeto de apostas e receita para os operadores de jogo.
Competições essas legalmente reconhecidas e protegidas no nosso ordenamento jurídico junto dos proprietários dos respetivos direitos desportivos, nomeadamente as federações e ligas desportivas profissionais.
Competições essas que, como é sabido, foram suspensas durante a crise pandémica acarretando perdas avultadas para o mundo do desporto e o colapso de um quadro de sustentabilidade financeira já muito precário, sem qualquer resposta de apoio extraordinário do Governo há mais de um ano a esta parte, para além de anúncios proclamatórios sem, ainda, tradução prática.
Ao invés, a realidade objetiva é que, perante a maior crise recente do desporto contemporâneo, foi consumado um corte provisório entre 10 e 15% nos contratos-programa que o Estado assinou com as principais federações desportivas nacionais, ironicamente devido a quebras oriundas na distribuição das receitas dos jogos sociais.
A raspadinha do património é o exemplo impressivo de uma resposta política para o financiamento da Cultura que evidencia que a respetiva área governamental dispôs de capacidade de ação política que a do Desporto não teve, mesmo quando os argumentos deste último assumem uma clareza meridiana pois, ao contrário da Cultura, são as suas competições que justificam a existência de apostas desportivas e vários jogos sociais do Estado.
Logo, o que está em causa não é uma questão técnica ou a necessidade de preservar a matriz de distribuição das receitas dos jogos sociais, mas o seu uso como instrumento político do financiamento público que se mantém ou altera em função das vicissitudes governamentais, conforme se reconheceu no Programa de Governo que inscreveu a medida de criação de uma lotaria instantânea para o património.
Presidente do Comité Olímpico de Portugal