A rapariga do El Dorado

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É mesmo verdade, o tamanho não importa. Robert Z. Leonard foi um dos mais prolíficos realizadores de Hollywood, dirigiu 160 filmes (!), mas hoje poucos se lembram dele. Menos ainda se recordam, é claro, dos muitos filmes que fez, entre os quais um western musical assaz manhoso, The Girl of the West Coast, estreado em português com o título A Rapariga do El Dorado. Com partitura de Puccini, a fita contava a história de uma cantora e dona de um casino que teve a infortuna, mais comum do que julgamos, de se apaixonar por um bandido em fuga às autoridades. Apesar desse enredo pueril, A Rapariga do El Dorado foi um tremendo sucesso no ano em que se estreou, 1938, às vésperas de mais uma guerra mundial.

Era o filme favorito de Evelyn "Ebby" Francis McHale, também ela uma rapariga da Costa Oeste, nascida em 1923 em Berkeley, na Califórnia. Era a sexta dos sete filhos de Helen e de Vincent Hale, um bancário que, quando Ebby era criança, aceitou trabalhar em Washington, para o governo, e mais tarde em Nova Iorque, onde ela e os irmãos estudaram e cresceram. As constantes andanças familiares e, acima de tudo, a débil saúde mental da mãe (que, segundo parece, padecia de uma depressão mal diagnosticada e nunca tratada) foram causa de constantes desavenças domésticas que culminaram na saída do pai de casa e no subsequente divórcio. A mãe regressou à Califórnia e Vincent, entretanto fixado em St. Louis, ficou com a guarda dos filhos menores, entre os quais Ebby, uma aluna discreta e tímida que, logo que terminou o liceu, foi destacada para o Women"s Army Corps, no Missouri, em apoio ao esforço de guerra. A experiência militar não lhe deixou boas recordações e a jovem queimou o uniforme mal foi desmobilizada. No final de 1944, foi viver com o irmão e com a cunhada para Long Island, nos arredores de Nova Iorque, tendo encontrado um emprego modesto como guarda-livros de uma firma de gravadores e carimbos na baixa de Manhattan.

Nos festejos de Ano Novo de 1945, Ebby, que celebrava também o facto de ter sido desmobilizada do exército, conheceu casualmente um rapaz, por sinal seu vizinho em Long Island. Barry Rhodes, assim se chamava o moço, acabara há pouco de regressar da guerra e, ao abrigo do G.I. Bill, estudava Engenharia numa universidade da Pensilvânia. Namoraram, decidiram ficar noivos, marcaram o casamento para Maio de 1947.

Com o aproximar do enlace, apareceram os fantasmas. Novos ou antigos, provavelmente herdados da mãe, os demónios da depressão apossaram-se de Ebby e do seu frágil espírito. Aos poucos, mostrava-se cada vez menos confiante na sua capacidade para ser uma boa dona de casa e uma esposa dedicada, confessando ao noivo as suas permanentes angústias e terríveis inseguranças. No Verão de 1946, um irmão de Barry casou-se e Ebby foi uma das damas de honor, mas, acabada a cerimónia, rasgou o vestido feito para ocasião e gritou que nunca mais iria usar nada semelhante.

Em 30 de Abril de 1947, Ebby foi visitar o noivo à Pensilvânia. Barry comemorava o seu 24.º aniversário e tudo correu pelo melhor: despediram-se com um beijo caloroso e terno e, segundo ele diria mais tarde à imprensa, a noiva estava feliz e alegre, parecia ter voltado a ser a rapariga de outrora, a bela mulher por quem se apaixonara.

Ebby apanhou o comboio das sete para Nova Iorque e desembarcou na Penn Station por volta das nove horas da manhã de dia 1 de Maio de 1947. Atravessou a rua, entrou no Governor Clinton, escreveu uma nota no papel timbrado do hotel, guardou-a na sua carteira. Pouco antes das 10h30 da manhã, entrou no Empire State Building, a dois quarteirões de distância, e comprou um bilhete para o observatório situado no 86.º piso do arranha-céus lendário. Dez minutos depois, John Morrissey, um polícia de trânsito em serviço no local, notou uma écharpe branca a esvoaçar nos céus, vinda do alto, e logo a seguir ouviu um ruído surdo. Viu então um grupo de pessoas a correr na Rua 34 em direcção a uma limusina Cadillac, ao serviço das Nações Unidas, estacionada à porta do Empire State Building.

Aos 23 anos de idade, e à semelhança de muitos outros, Evelyn Francis McHale decidira lançar-se do alto do arranha-céus lendário. Até hoje, já houve cerca de 30 tentativas de suicídio no Empire State Building, a esmagadora maioria das quais com êxito (em 1979 e em 2003, milagrosamente, dois suicidas saltaram do miradouro do 86.º andar sofrendo apenas ligeiras escoriações).

A primeira morte ocorreu ainda o edifício não estava sequer concluído, quando, em 7 de Abril de 1931, um carpinteiro que acabara de ser despedido decidiu atirar-se do 58.º andar. A essa, muitas outras se seguiram.

A morte de Ebby não passaria, assim, de mais uma, igual a tantas, não fora o caso de por perto, muito perto, andar um jovem estudante de fotografia de máquina na mão, Robert C. Wiles, que tirou várias fotografias da suicida cerca de quatro minutos depois do impacto fatal. Uma das imagens ocuparia uma página inteira da edição de 12 de Maio 1947 da Life Magazine e ficou conhecida para todo o sempre com o nome The Most Beautiful Suicide.

A fotografia de Miles, de facto, tem um poder muito singular, único, fatalmente atractivo, impregnado de uma intensa carga erótica. A rapariga parece repousar e posar no tejadilho esmagado do Cadillac, serena e glamorosa, como uma bela adormecida. As curvas das sombras criam uma atmosfera lânguida, adensada pela expressão tranquila do rosto, pela face perfeita, impecavelmente maquilhada, pelas mãos com luvas, uma das quais agarrada a um colar de pérolas. Não se vê sangue nem dor, não há ferimentos nem escoriações, é tudo de uma placidez imensa, como se Ebby tivesse adormecido ali por um instante eterno, indiferente aos gritos da populaça e às sirenes das ambulâncias.

Entretanto, no cimo do Empire State, o detective Frank Murray encontrou o casaco de Evelyn, cuidadosamente dobrado no parapeito do miradouro, e uma caixa de maquilhagem com várias fotografias de família.

E também uma carteira de bolso preta, no interior da qual estava a nota derradeira, escrita em papel timbrado do Hotel Governor Clinton. Nela, Ebby dizia que não queria que ninguém a visse assim, nem mesmo os seus familiares, e pedia que o seu corpo fosse cremado, destruído pelo fogo. Implorava ainda à família que não celebrasse qualquer missa em sua memória e terminava pedindo que dissessem ao seu pai que ela herdara muitas das tendências da mãe. A irmã identificou o cadáver e, cumprindo o seu último desejo, Ebby foi cremada em local desconhecido.

Uma vontade, porém, não pôde ser respeitada. Ebby queria que ninguém visse o seu cadáver, nem mesmo a família, mas a fotografia de Wiles impediu a realização de tal desígnio. Devido a ela, o cadáver Evelyn Francis McHale, the most beautiful suicide, correu mundo e, como agora se diz, tornou-se icónico. Em 1963, Andy Warhol apropriou-se dele para fazer a serigrafia Suicide (Fallen Body), integrada na série Morte e Desastres, que produziu entre 1962 e 1967. Depois disso, houve centenas de pastiches e recriações, letras de músicas (Where Are You Going Evelyn McHale?, de Namring Charles; Beautiful Suicide, dos Red Sun Rising, Evelyn McHale, dos Parenthetical Girls), videoclips (Unconditionally, de Katy Perry, do álbum Prism, de 2013), capas de discos (Gilt, de 1995, da banda Machines of Loving Grace), instalações artísticas (Nude and Descend, de Matthew Day Jackson, de 2013) e até campanhas publicitárias, como a que Neiman Marcus fez com a actriz Drew Barrymore. E, além de um blogue, existe, claro, uma página do Facebook com o nome de Evelyn McHale.

Ao lançar-se do alto do Empire State Building, despenhando-se sobre uma limusina das Nações Unidas na manhã do Dia do Trabalhador de 1947, aquela jovem da Costa Oeste, rapariga do El Dorado, não desejou, por certo, uma morte privada e discreta. Mas quis, seguramente - e deixou-o dito -, que não lhe vissem o cadáver, porventura por imaginar que estaria desfeito pelo impacto da queda de um 86.º andar. Nunca pensou, como é óbvio, que nas imediações da tragédia andaria um jovem estudante de fotografia e que a sua imagem, the most beautiful suicide, teria um impacto tão grande, talvez mesmo maior, do que a queda lá do alto, centenas de metros a voar. Se Ebby não se tivesse matado não teria a fama que hoje tem nem fariam músicas com o seu nome ou pinturas com o seu cadáver. Se se tivesse casado, como estava previsto, teria tido família e filhos, mas nunca o seu rosto inspiraria uma serigrafia de Andy Warhol ou um vídeo de Katy Perry.

O fotógrafo Robert Wiles conquistou efémera fama com o retrato, mas dele não existem mais notícias ou registos. Nunca mais voltou a publicar qualquer fotografia. Quanto a Barry Rhodes, o noivo, tornou-se engenheiro, mudou-se para o sul do país e faleceu na Florida em 2007, com 87 anos. Nunca casou.

Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia

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