A rábula do bom aluno

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A rábula do bom aluno da Europa voltou em força. Desde logo, pela mão de quem a trouxera nos idos de oitenta: Cavaco Silva. Agora, diz o Presidente da República, é o tempo da "austeridade digna", mandamento máximo ajustado, sugere Cavaco, à convicção de que "acabaram os tempos de ilusões". Cavaco Silva diz sobre o tema duas coisas: primeira, que o caminho traçado pela troika é o caminho a trilhar, não tenhamos ilusões; segunda, que o caminho mandado trilhar pela troika cria uma ilusão de futuro mas, como acabaram os tempos de ilusões, conviria perceber que, sem crescimento, a troika nos afundará afinal mais e mais. Eis a quadratura do círculo no seu estado puro.

Angela Merkel faz também a apologia do Portugal-bom-aluno. Vejam Portugal - diz ela à Itália e à Grécia -, está a cumprir como deve ser os ditames de compressão dos salários e de encurtamento da economia. Assim é que é. Assim salvaremos o euro. Com milhões de europeus atirados para o desespero e para a indignidade, é certo, mas que havemos de fazer: acabaram os tempos de ilusões...

A rábula do Portugal-bom-aluno faz parte da estratégia de cordão sanitário à volta da Grécia. Nesta Europa autofágica que, sem outros horizontes que não sejam os da sua própria negação como projecto social, devora os seus mais frágeis, a dicotomia entre centro e periferia radicalizou-se. E o centro, a quem o Tratado de Lisboa deu a possibilidade de se assumir como directório governante, vai fazendo o ranking da periferia e tirando dele ilações. Ele há os cábulas, preguiçosos e, por isso mesmo, condenados a figurar na lista de Estados falhados - a Grécia - e há os bons alunos, reprodutores abnegados das doutrinas mais convenientes que assumem que, para eles, acabaram os tempos de ilusões e que agora chegou o tempo de agradarem a quem manda mostrando como são tão diferentes dos falhados - Portugal, para Cavaco Silva, para Passos & Portas e para Merkel. É um falso ranking: morrerão uns e outros. Mas aos últimos valerá entretanto a ilusão (ooops, ele há algumas que afinal convém manter) de que se salvarão. Eis a doutrina: salvamo-nos se formos bons alunos. Mesmo se aquilo que o professor nos ensina for a nossa destruição.

A juntar a esta efabulação ideológica, a rábula do Portugal-bom--aluno está a cultivar entre nós um discurso totalmente perverso sobre a chamada "paz social". É o rosto policial da dita rábula. Trazido por Passos & Portas, ele assenta nos relatórios das polícias e das secretas sobre o previsível incêndio das ruas, transformadas em lugar de tumulto. E, mais que tudo, formata-nos na convicção de que o que afunda os gregos é a mistura entre preguiça e tumulto, nunca a receita dos salvadores. Cultivemos pois a paz social, aconselham os arautos da rábula do bom aluno. É a paz da quietude, do assentimento bovino, aquilo que nos aconselham, a paz do quanto menos ondas melhor que a nossa política é o trabalho, o trabalhinho muito lindo. A paz de um tempo em que se acabaram todas as ilusões. Excepto uma: a liberal.

Pois eu, que sou um teimoso crente em ilusões, acho que um dia, quando se fizer a história do Estado social, do modelo social europeu, enfim, dos direitos sociais fundamentais, o rigor mandará que se conclua que a rua grega foi um baluarte de defesa dessa réstia de dignidade e que a quietude foi cúmplice dos seus agressores. E que a paz social verdadeira é muito mais a que defendem os insubmissos que teimam em não prescindir de um Estado amigo da dignidade do que a que querem os amigos dessa contradição nos termos que é a "austeridade digna".

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