A questão dos netos

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Simone de Beauvoir, no seu ensaio A Velhice, afirma que os famosos poemas de amor aos netos, escritos por Victor Hugo na sua Arte de ser avô, mais do que poemas às crianças e ao futuro, são afinal poemas à velhice e ao passado.

É curioso como as leituras podem divergir: tendo relido recentemente aquela obra de Victor Hugo, vi nela, para além das histórias das brincadeiras dos netos, uma constante declaração de revolta contra os poderes e as opressões do mundo, um conjunto de poemas altamente políticos e críticos, na linha dos Castigos, mas mais serenos.

Não é a velhice que obceca o poeta, face aos seus netos: é a Revolução. A Revolução é a promessa que o avô poeta, aos setenta e cinco anos, aponta aos netos em cada um dos poemas daquele livro. É a juventude da Revolução que o velho poeta proclama em voz alta. Como disse Aragon desta obra, é um livro de futuro, não um livro de velhice.

A questão filosófica dos netos está toda aqui: os netos vêm confirmar o nosso envelhecimento e anunciar a nossa decrepitude ou vêm-nos trazer a promessa de um futuro que se estende no tempo até muito longe? Sinal de finitude ou abertura da promessa? Os netos são tudo isso e o mistério do porvir que trazem consigo é, em si mesmo, uma manifestação do princípio esperança (Ernst Bloch).

O livro de Victor Hugo foi-me oferecido pelo meu amigo Pierre Léglise Costa, por ocasião do nascimento (com dois meses de intervalo) das minhas duas netas. Mas a questão filosófica colocara-se logo diante dos berços de recém nascidos onde pousavam aquelas coisas novas: Como qualquer coisa nova/inaugurando o seu dia/ ou como o caderno novo/quando a gente o principia (João Cabral de Melo Neto). Ali estava o radicalmente novo, do mesmo modo que há anos tinham estado os filhos, mas agora o caderno novo eram elas, as netas, a inaugurar o seu dia.
E porque maço eu os leitores com estas histórias, leitores que, ou têm netos e sabem esta missa de cor, ou não têm e lhes é indiferente o cantochão? Há aqui um apelo escondido a um reconhecimento ou identificação por parte do leitor. Escrever é procurar uma cumplicidade com quem nos lê e se não a encontrarmos falhamos.

Entre A arte de ser avô, de Victor Hugo e, por exemplo, Gente de Palmo e meio, de Augusto Gil, vai a distância, não apenas do genial ao engraçadinho, mas de uma autoidealização do avô, que coloca o poeta de pé, em frente ao mundo, a gritar para toda a Humanidade, em contraponto a uma mera e ternurenta aceitação passiva e risonha do mundo tal qual é. Nada contra Augusto Gil, mas a poesia está em Victor Hugo.

As netas não nos encomendaram o sermão e, tendo por elas o futuro, agem pragmaticamente sobre o mundo, comendo gelados e correndo de trotinete. Jeanne e Charles, os netos de Victor Hugo, não procediam com menos pragmatismo, usando constantemente o avô como mediador com a mãe, por forma a terem condições e regras mais vantajosas no seu quotidiano
O que desejámos e desejamos aos nossos filhos desejamos agora aos netos a uma potência superior. Não porque os amemos mais: é porque o tempo dos netos realizarem os seus próprios desejos se estende muito mais no tempo e por isso o nosso desejo para eles expande-se até ao infinito.

As gracinhas dos netos de Victor Hugo não são originais, mas a força do poema transforma aquela relação num manifesto de alcance cósmico. A grande poesia leva os sentimentos mais caseiros e banais à respiração dos astros e á fúria do mar. Victor Hugo é capaz de levar o seu sorriso de avô ao encontro da grande potência escura, da matéria negra de que é feita a melhor parte da sua poesia, segundo a leitura recente de Annie Le Brun.

Minhas netas não poderão contar com grandes metamorfoses, mas isso ser-lhes-á indiferente. Graças a Victor Hugo, acompanhei os primeiros meses das duas meninas com a leitura deste livro, que ensina muito mais do que apenas a Arte de ser avô. Como Charles e Jeanne, elas farão o seu caminho e eu apenas tenho para lhes dar a enorme esperança de um infinito amor.


Diplomata e escritor

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