A queimar os últimos dias

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Então, ainda vais, ou estás de volta? é a frase mais batida nos empregos - para quem tem a felicidade de ter um. A maioria já foi, estás-lhes na cara. Para os que já regressaram ou para os que ainda queimam os últimos dias de férias, a praia deixará de ser presente para voltar a ser aquele futuro que adoça outros presentes mais adversos, aquele desejo que sonhamos como prémio quando nos sobrepesa a realidade de cada dia.

Descontada a areia que sacudimos dos pés, a praia tornou-se o destino mais popular e gozado da nossa civilização: o lugar de sermos outro. Praia é uma palavra suave e lisa, como todos os ditongos. E deriva de ser plana, segundo os dicionários, que a definem como um "um acidente geográfico" junto a uma massa de água, que é constituída por partículas soltas feitas de rocha, como areia, cascalho, seixos, ou de fontes biológicas, como conchas de moluscos ou algas coralinas. E, no entanto, as definições de praia são tão estreitas que não cabem nelas todo o seu real significado.

Aquele que é o mais preferido dos nossos destinos para repouso começou por ser temido, porque representava perigo: a faixa onde o mar e a terra colidem era espaço hostil, indefensável, aberto a temporais e à pirataria. Por isso, as cidades mais antigas não foram construídas nas praias, mas mais adentro, abrigadas.

A invenção da praia como lugar de veraneio só ocorreu em finais do século XIX, quando franceses e ingleses mais abastados decidiram que era elegante e saudável tomar banhos de mar, pasmar sob guarda-sóis, ou pavonear-se no areal. Invenção de ricos, a praia só foi apropriada pelos pobres já em pleno século XX, muito a custo e após décadas de combates pelo direito a férias. Para a história, fica a imagem gloriosa dos operários da Frente Popular francesa, em 1936: após semanas de greve, conquistaram o direito ao repouso remunerado e partiram em massa à descoberta da praia. Em Portugal, os ventos desse direito só chegariam no ano seguinte, em 1937, por força de uma convenção da Organização Mundial do Trabalho. Por cá, é certo, uma minoria podia tirar até oito dias, mas apenas depois de cinco anos de "bom e efetivo serviço". Na prática, porém, foi só com a revolução de 1974 que a esmagadora maioria da população pôde gozar férias remuneradas. Só desde então a praia começou a ser o que é - o lugar de uma realidade paralela, onde a grande maioria não faria noutros lugares o que faz nela: não andaria de tanga e biquini, não se deitaria no chão, não dormiria em público, não esqueceria o relógio, não ousaria o atrevimento. A praia tornou-se um símbolo de lazer: estar na praia é, em princípio, não fazer nada que não se queira fazer, e fazer tudo o que não seja aquilo a que em geral chamamos trabalhar - enfim, um lugar para uma espécie de carnaval de verão, que dura no máximo umas semanas.

Em breve, o Google vai revelar-nos as fotos deste verão de 2022, e parecerá que estávamos felizes - e certamente estávamos, o mais possível. Há aqueles, porém, que não saem nem voltam de lugar nenhum. Excluídos da festa, riscam os dias que faltam para que voltem os que partiram, nem que seja para se sentirem menos sós e poderem invocar o mal de muitos, a consolação de todos. Para os que ainda vão, a única promessa da praia é que continua lá, pelo menos por enquanto. É que, segundo as previsões científicas, entre as mudanças climáticas, o uso massivo e desenfreado, a construção descontrolada e a erosão, o mundo perderá um quinto das suas praias em poucas décadas, e metade delas até final do século. Há, pois, que gozá-las como se não houvesse amanhã. Até porque os amanhãs que se avizinham ameaçam temporal.


Jornalista

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