A queima dos arquivos-bomba

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Se o leitor estiver a considerar a formação de uma quadrilha para fins escusos - em toda cidade do mundo, a qualquer momento, haverá alguém pensando nisso -, é bom saber que, como todas as empreitadas comerciais, esta também tem riscos. Um deles é o que acontece quando os interesses de seus membros não coincidem. Mesmo nas melhores quadrilhas, cedo ou tarde um desses membros se sente abandonado, traído ou até entregue à justiça pelos antigos colegas. Nesse caso, sua única arma será tornar-se um arquivo vivo, composto de informações que acumulou durante o tempo em que foi membro efetivo da organização, informações estas que serão de grande interesse para a lei - o que obrigará seu ex-chefe, docemente constrangido, à pratica conhecida no Brasil como "queima de arquivo".

Queima de arquivo significa silenciar uma voz incómoda - impedir que o ex-membro revele as manobras, tramoias e trampolinices que permitem à firma auferir vantagens, benesses e lucros indevidos, quase sempre às expensas do Governo, das instituições e das pessoas honestas que pagam impostos. Como se vê, não é um arquivo desprezível. Imagine o que os órgãos oficiais de investigação, tanto criminal quanto fazendária, fariam com tais revelações. E, embora o Brasil seja um terreno fértil para a prática de ilícitos, tanto esta quanto a sua prevenção - a queima do arquivo - não é de sua exclusividade.

Todos os ditadores do mundo, passados e presentes, e mesmo alguns governos ditos democráticos, a têm como política secreta. Sempre que se sentem ameaçados por um subordinado influente, seja ele um general, um potencial líder ou o próprio irmão, não vacilam em degolá-lo, servir-lhe vidro moído ao jantar ou atirá-lo às serpentes, pretextando traição. A ideia é sempre livrar-se do súbito inimigo que lhes conhece os segredos.

A morte de Leon Trotski, no México, em 1940, a mando de Josef Stalin, é a prova de que não importa quantos anos se tenham passado ou quão longe o arquivo foi morar. Trotsky já estava fora da URSS desde 1928 e vivendo tranquilo em sua casa no bairro de Coyoacan, na Cidade do México, recebendo admiradores e principalmente admiradoras. Mas tornara-se também um importante pensador marxista, que influenciava socialistas do mundo inteiro para se oporem a Stalin. Pois Stalin não sossegou enquanto não se livrou dele, com um golpe de picareta na cabeça desferido por um agente infiltrado em sua intimidade. O agente, que por isso ficou famoso, não importa - foi Stalin quem matou Trotsky.

Outra queima de arquivo associada à necessidade de se livrar do inimigo foi a execução do general Humberto Delgado, ordenada por Salazar, em 1965. Delgado era um militar graduado do fascismo e adorador de Salazar até que, um dia, durante a Segunda Guerra, abriu os olhos para o verdadeiro Salazar e dedicou-se a combatê-lo. Candidatou-se à presidência da República em 1958, foi "derrotado", sentiu-se ameaçado e se refugiou na Embaixada do Brasil.

O embaixador Alvaro Lins, grande escritor brasileiro, levou um ano lutando contra a insidiosa burocracia salazarista, mas conseguiu livrar Delgado e trazê-lo para o Rio. O mundo inteiro soube do caso. Delgado então voltou clandestinamente para a Europa, promoveu rebeliões em Portugal e virou lenda. Em 1965, foi atraído para uma cilada perto de Olivença e morto a tiros pela PIDE. E, mais uma vez, não importam os executores do ato - foi a mão longa do ditador que empunhou a arma.

Há muitas maneiras de queimar arquivos, dependendo da situação de cada um - se estiver à solta, albergado, foragido, oculto ou preso. Um arquivo à solta será facilmente deletado com uma emboscada em que ele se verá, de repente, sob a mira dos canos e sem reação. No Brasil temos muitos exemplos bem-sucedidos desse tipo de queima de arquivo, envolvendo partidos e políticos da direita à esquerda. Em todos os casos, a "verdade" a que levaram as investigações oficiais, descrita em tramas rocambolescas, é frontalmente contrariada pelos factos e pela intuição popular.

Um caso bem recente foi o assassinato na Bahia de um ex-policial, Adriano Nóbrega, ligado ao submundo do crime e, por coincidência, à família Bolsonaro. Pela maneira quase pública com que ele foi executado, é porque devia ter muito a contar...

Mas nem todas as formas de queimar arquivo são tão fáceis. O "acidente" de carro, por exemplo, é mais complexo - requer planejamento, destreza e especialistas. A "queda" de um 10.º andar, por sua vez, entrou em desuso pela lambança que faz o arquivo ao atingir o chão. Há também a substituição de remédios, destinada a provocar um enfarte, e o envenenamento progressivo - mas estes exigem convivência com o arquivo e paciência, nem sempre possíveis. No caso de o arquivo estar preso, mesmo sob "vigilância máxima", sempre se pode armar uma "briga" no pátio com outro preso, que fará o serviço; uma "tentativa de fuga", frustrada com tiros pelas costas; e o infalível "suicídio" na cela.

Neste momento há dois arquivos-bomba no Brasil, implorando para ser queimados. Um está solto: o advogado Frederick Wassef. O outro está preso: o vigarista Fabrício Queiroz. Ambos, elementos até há pouco estreitamente ligados à quadrilha, digo, à família Bolsonaro, mas, subitamente, capazes de se voltarem contra ela. Como os dois estão muito visados e sendo acompanhados pela imprensa, dificilmente qualquer das opções acima de queima de arquivo será aconselhável. Mas os interessados nessa queima estudam uma nova técnica, acima de qualquer suspeita e que se aplicaria aos dois.

Alguém lhes transmitir a covid-19 - e tratá-los com uma droga fabricada, no Brasil, pelos laboratórios do Exército e, contrariando a opinião da Organização Mundial da Saúde, ardentemente defendida por Jair Bolsonaro: a cloroquina.

Jornalista e escritor brasileiro

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