A propósito da castração química
A "castração" pode ser definitiva por remoção cirúrgica dos testículos (por exemplo, em casos de cancro do testículo ou da próstata, ou no tratamento da transexualidade) ou temporária (pela administração de medicamentos antiandro- génicos), como veremos adiante. Também se pratica a remoção dos ovários por razões médico-cirúrgicas. Freud utilizou também o conceito de "complexo de castração", que seria provocado por um pai ou uma mãe "castradores" porque impedem o desenvolvimento normal da personalidade do filho.
Neste texto irei referir-me apenas à "castração química" e à sua utilização específica como um dos tratamentos indicados para algumas doenças do foro psiquiátrico, denominadas parafilias, de acordo com a Classificação Internacional das Doenças (CID-10), de 1993.
Muitos técnicos de saúde que trabalham com doentes da área da Sexologia preferem utilizar entre si designações mais clínicas, descritivas e cientificamente correctas, como por exem- plo "terapia reguladora da intensidade do desejo", embora sendo óbvio que a palavra "castração" tenha um impacto público que nenhum meio de comunicação social vai deixar de aproveitar, agradecendo-se neste caso ao DN a oportunidade de um melhor esclarecimento do conceito.
Um primeiro esclarecimento importante é que muitas pessoas, algumas com responsabilidade social, continuam a confundir "pedofilia" (uma doença) com "abuso sexual infantil" (um crime). O pedófilo é um adulto (80%-85% são homens) cujo interesse sexual por crianças pré-púberes excede claramente o seu interesse sexual por adultos (de acordo com o CID - 10). Não deve ser confundido com o adulto abusador sexual de crianças, o qual é melhor descrito como "qualquer adulto que tenha contactos sexuais com crianças pré-púberes". Este "qualquer adulto"vai incluir pedófilos e não pedófilos, pois há adultos que abusam sexualmente de crianças mas não o fazem por serem pedófilos, mas sim por uma variedade de outros motivos (por exemplo, violadores, o abuso patriarcal e violento do poder, a procura de estímulos sexuais diferentes, o desprezo dos sociopatas pelas regras sociais, embriaguês ou uso de outras drogas, etc.). Há, no entanto, um número considerável que é simultaneamente pedófilo e abusador sexual infantil. Contudo, é também importante realçar que há pedófilos que nunca abusaram sexualmente de uma criança.
A Sexologia Clínica tem vindo a interessar-se acima de tudo pela avaliação e tratamento consentâneo dos pedófilos e pelo recidivismo de alguns agressores sexuais, tendo obtido sucessos crescentes nos últimos 25 anos, em especial nos países mais desenvolvidos do Ocidente.
A maioria dos pedófilos não pede ajuda terapêutica, e aqueles que o fazem são em regra pressionados pela lei, pela família ou por instituições (por exemplo, a Igreja). Esta circunstância ajuda a explicar porque se torna tão difícil o seu tratamento com sucesso. A equipa terapêutica deverá ser multidisciplinar (psiquiatra, psicólogo e endocrinologista), dado que os melhores resultados têm sido obtidos com a conjugação do tratamento psicológico (terapia cognitivo-comportamental [TCC]) com tratamento psiquiátrico (psicofármacos) e endocrinológico (hormonal). Neste último, a que se tem chamado "castração química", são utilizadas substâncias que bloqueiam a acção dos androgénios, levando assim à diminuição do impulso biológico, do desejo sexual, das fantasias e da excitação sexual, em consequência da redução parcial das hormonas masculinas (testosterona e di-hidrotestosterona). A duração do tratamento hormonal pode ir até vários anos. A sua associação à TCC e aos psicofármacos (inibidores selectivos da recaptação da serotonina) constitui a forma mais eficaz de tratamento das parafilias, conseguindo-se uma redução acentuada e continuada da excitação parafílica e do comportamento recidivante. Enquanto o doente está encarcerado, não é necessário juntar aos outros dois tratamentos o bloqueador da testosterona, o qual deverá ser iniciado logo que a libertação esteja iminente.
A administração, supervisão e seguimento destes doentes exige unidades especializadas que já existem no nosso País (por exemplo, a consulta de Sexologia do Hospital Júlio de Matos), e que mantenham estreitas ligações com os sistemas judicial, prisional e médico-legal. É esta ligação que necessita de ser reforçada em Portugal, como já acontece normalmente em vários países da Comunidade Europeia, nos EUA e no Canadá.