João Lobo Antunes: A primeira decisão que tomou, registar a vida em autobiografia

Médico e ensaísta, João Lobo Antunes (1944-2016) foi surpreendido pela doença. Não acreditava perder a luta e viveu sempre muito ocupado
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A notícia da morte de João Lobo Antunes era esperada, chegou ontem ao início da tarde. Há meses ele próprio perdera a esperança de que os tratamentos contra o tumor o salvassem. Médico, cirurgião, ensaísta foi surpreendido pela notícia da doença meses após ter-se reformado, era a última surpresa que esperava na vida, pois à sua frente sentia o tempo de alguns anos para fazer coisas que gostava, sem ter a obrigação de entrar cedo no serviço de neurocirurgia do Hospital de Santa Maria, cujos corredores conheceu tão bem, tal como o mal que lhe foi diagnosticado: um minúsculo sinal na pele, que avançou em silêncio, devastador, o ameaçava de morte.

Apesar de um diagnóstico que o assustara, João Lobo Antunes não acreditou ser possível perder a luta contra o cancro como estava previsto, tanto assim que viveu bastante ocupado ainda mais de um ano. Uma das suas primeiras decisões foi a de registar a vida toda numa espécie de autobiografia. Como se se quisesse confrontar com a existência por via da memória e da escrita. Como já fizera a um dos seus mestres, Egas Moniz, sobre quem redigira uma inédita biografia, consciente de que a maioria "dos portugueses não tem ideia de quem era". Sobre o protagonista, dissera ao DN então: "A pessoa acaba por nos habitar, ocupa-nos o pensamento, acompanha-nos".

[destaque:Apesar de um diagnóstico que o assustara, não acreditou ser possível perder a luta contra o cancro]

Talvez fosse esse o seu objetivo ao registar uma vida inteira num projeto interrompido ontem definitivamente e de há uns meses para cá provisoriamente. Num dos capítulos que já tinha escrito, descrevia a infância. E não o fazia sem se beliscar com algum sentido de humor, como ao recordar o comentário que a professora que estava no exame de admissão ao liceu lhe fizera: "Na prova oral, a professora começou por aludir à minha face sardenta, dizendo para minha vergonha: "Pareces mesmo um ovinho de perdiz!"" Mesmo assim, a sua preocupação nesse dia era a de não estragar a caneta Parker 51 que o avô entregava aos netos para realizarem exames.

De outras canetas saía uma letra que muitos dos pacientes do médico observaram com atenção para perceberem o seu destino nas andanças nos corredores do hospital durante a visita matinal ou aquela que a colaboradora em quem confiava a "tradução" dos manuscritos datilografava ou passava a computador. A prática dessa escrita resumiu em muito a vida de João Lobo Antunes médico e ensaísta, até porque muitos dos que eram tratados por si, e que também o liam, conjugavam-no numa só pessoa.

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Como foi o caso da sua última publicação, o volume que recolhia textos dispersos, intitulado Ouvir com Outros Olhos, no qual escreve uma primeira linha profética: "Reuni nesta coletânea - que o destino pode querer que seja a última -, alguns textos que fui escrevendo nos últimos anos, e que se encontravam dispersos". As nove palavras entre travessões tanto podiam ser uma confissão do que previa, como a de não pretender fazer outra coletânea. Apesar de tudo indicar que seria a primeira hipótese a mais fiável, João Lobo Antunes negou quando se lhe fez essa pergunta e desconversou. Questionado em seguida porque fazia pela primeira vez uma apresentação pública ao fim de sete livros, só disse: "Talvez tenha sido a hora de exprimir a gratidão." Isto porque em relação aos seus livros tinha a opinião de que "uma obra nova deve trepar silenciosamente pelos escaparates e ali ficar até que alguém curioso a pegue e leve." Neste caso, quem lhe pegasse poderia ler uma das suas preocupações principais na relação entre o profissional da saúde e o doente: "Não sei o que nos espera, mas sei o que me preocupa: é que a medicina, empolgada pela ciência, seduzida pela tecnologia e atordoada pela burocracia, apague a sua face humana e ignore a individualidade única de cada pessoa que sofre, pois embora se inventem cada vez mais modos de tratar, não se descobriu ainda o modo de aliviar o sofrimento sem empatia ou compaixão." Está tudo dito sobre o médico, num longo parágrafo, daqueles que gostava de escrever, manejando a língua portuguesa com a mão do cirurgião hábil.

[destaque:Ao jubilar-se, escolheu como tema da última lição "Uma Vida Examinada"]

Ao jubilar-se em junho de 2014, poucos dias antes de completar 70 anos, escolheu como tema da última lição "Uma Vida Examinada". A sessão decorreu em sala cheia, o auditório Egas Moniz da Faculdade de Medicina do Hospital de Santa Maria, onde tirou licenciatura e doutoramento e foi posteriormente responsável pelo Serviço de Neurocirurgia. Fez questão de se intitular "um homem que a medicina fez médico", comentar a descendência numa linha de vários médicos na família, e afirmado, antes de considerar que abandonava a profissão sem estar curado da sua paixão por ela, que "se há doença crónica que deve afetar um professor é o otimismo".

Para trás ficava uma experiência de vida profissional de quase década e meia em Nova Iorque, de 1971 a 1984, tendo integrado o Departamento de Neurocirurgia do New York Neurological Institute e do Columbia Presbyterian Medical Center, como investigador bolseiro das fundações Fullbright e Matheson. Ao regressar a Portugal, iniciou uma carreira universitária como professor catedrático da Faculdade de Medicina de Lisboa, onde foi eleito para o Conselho Científico da instituição e da qual era Professor Emérito. Em 2001, torna-se um dos fundadores e presidente do Instituto de Medicina Molecular, entre muitas outros cargos exercidos, como os de presidente da Sociedade Europeia de Neurocirurgia, da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa e da Academia Portuguesa de Medicina. Presidia atualmente à Comissão Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Já desempenhara funções semelhantes no grupo José de Mello - ao qual esteve ligado desde o início da carreira, em 1968, e onde foi um elemento decisivo em vários momentos da história dos hospitais CUF, como investigador, formador e médico.

Em 1996 fora escolhido pelo júri do Prémio Pessoa, em 2015 recebeu o Prémio Nacional de Saúde e, entre as condecorações recebidas, estão a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, da Ordem Militar de Sant"Iago da Espada e da Ordem da Liberdade, esta concedida por Marcelo, naquela que foi uma das últimas aparições públicas do neurocirurgião. Surpreendendo os pares, em 1996 decidira exercer a intervenção política, tendo sido primeiro mandatário da candidatura de Jorge Sampaio à Presidência, situação a que voltou por Cavaco Silva mais duas vezes. Por nomeação do Presidente, fez parte do Conselho de Estado de 2006 a 2016.

[destaque:Em 1996 fora escolhido pelo júri do Prémio Pessoa, em 2015 recebeu o Prémio Nacional de Saúde]

João Lobo Antunes tinha 72 anos e esteve várias vezes internado nos últimos meses mas, recentemente, decidiu ficar em casa. Se as reações oficiais eram esperadas, o que nas horas a seguir à notícia da sua morte mais impressionou foi a gigantesca quantidade de comentários nas redes sociais. Unânimes na admiração pelo médico e no lamento pelo desaparecimento do homem. O Presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, ainda em Cuba, referiu ter partido uma "figura ímpar", "um grande académico", "um grande português". O ex-presidente Cavaco Silva manifestou-se "profundamente consternado". Salvador de Mello lamentou "a morte de um dos nossos maiores, tanto em termos profissionais como pessoais". Os presidentes das três entidades onde mais trabalhou, Faculdade de Medicina de Lisboa, Instituto de Medicina Molecular e Centro Hospital de Lisboa Norte, juntaram-se em comunicado para prestar homenagem "a um dos mais notáveis Mestres", ao "Homem invulgar", marcante da sua geração.

Ainda não se conhecem local e hora das cerimónias fúnebres.

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