A "prima americana" que conta histórias da emigração portuguesa nos seus livros

Brunch com a escritora americana Katherine Vaz.
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Conheci Katherine Vaz em Nova Iorque. Num dia frio de janeiro de 2017, toquei à campainha de uma casa na 62nd Street, entre a Lexington e a Terceira Avenida, no East Side de Manhattan. Não nos conhecíamos, mas a escritora alinhara em participar no projeto Pela América do Tio Silva, em que o DN, com apoio da FLAD - Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, dava a conhecer o percurso de luso-americanos de sucesso. E foi a sua história que Katherine me contou sentada na biblioteca, rodeada de estantes de livros. A história do pai, August Vaz, nascido nos EUA, mas que voltou bebé para os Açores após a morte da mãe, de complicações do parto, antes de regressar à América aos 8 anos. A história de como as histórias que ouvia o pai e a madrinha Clementina contar cedo a inspiraram a escrever, tanto que aos 12 anos já sabia o que queria ser. Mas também a sua história de amor com Christopher Cerf, o homem que compôs mais de 300 músicas da Rua Sésamo e de como a vida se encarregou de lhes dar uma segunda hipótese.

Passados seis anos e meio, encontramo-nos no Maria Food Hub. Katherine veio passar uma temporada a Lisboa, a casa da amiga Susana Moreira Marques, em Arroios, e desafiou-me para um almoço. Nem hesitei. A escolha do local também foi "recomendação" da escritora portuguesa que Katherine conheceu no Disquiet, um programa literário que junta autores portugueses e americanos. Afinal é para aquele restaurante que Susana gosta de vir trabalhar com o portátil.

Depois de um abraço e um "há quanto tempo!", assim, em português, entramos e sentamo-nos junto a uma janela. Pergunto a Katherine se prefere que a conversa decorra em inglês, mas ela diz que não, que precisa de praticar. "Estou a tentar melhorar o meu português. Está a ficar mais fácil. Ando a estudar, tento fazê-lo uma hora por dia. Leio ou faço aulas online, com o professor Diogo Fernandes da escola Portuguese Connection." E até começou a ver programas em português no Netflix. "Vi Até Que a Vida nos Separe e Rabo de Peixe, que é passado nos Açores, mesmo não sendo a ilha do meu pai... Vejo em português, com legendas em português. Eles praguejam muito", ri-se.

Hora de pedir e ambas vamos para o hambúrguer de bacalhau - uma estreia para a portuguesa e americana -, que partilhamos. Escolhemos ainda duas saladas com uva assada, manga e tomate cherry. Katherine opta por um sumo de melancia, enquanto eu vou para a limonada.

Enquanto esperamos pela comida, vamos falando do que trouxe Katherine a Lisboa. Sobretudo esse livro que demorou 17 anos a escrever e agora finalmente foi editado. "Quis vir a Lisboa para me colocar numa situação diferente. Adoro Nova Iorque, adoro viver em Nova Iorque, mas precisava de uma pausa para descomprimir. Foi um ano difícil. Perdi a minha mãe mesmo antes do Dia de Ação de Graças e o meu marido teve problemas de saúde", vai explicando Katherine. Confessando não ser "muito boa a relaxar", a escritora explica que mal termina um livro, começa logo a pensar no outro. "Por isso decidi passar algum tempo num sítio onde não estivesse a pensar nisso, mas antes esperasse que o livro viesse ter comigo. Quis estar num ambiente diferente, ver e ouvir coisas diferentes. Mesmo que não me traga o momento Eureka!, foi uma maneira de parar e olhar para o mundo, para uma parte diferente do mundo", continua.

Dito isto, e já com o hambúrguer à frente, num contraste interessante com a frescura da salada, Katherine afirma-se muito feliz por ter finalmente terminado Above the Salt. Mas afinal que história é esta que demorou mais de década e meia a escrever? "É sobre um grupo de pessoas na Madeira que foram convertidas aos presbiterianismo, violentamente afastadas da ilha e que foram para o Illinois no tempo de Lincoln", conta a escritora, antes de acrescentar como lhe surgiu a ideia.

"Eu estava a dar uma palestra na Biblioteca do Congresso, em Washington, a convite da Divisão Hispânica e a doutora Iêda Siqueira Wiarda disse-me que havia uma exposição engraçada na Sala do Mapa que eu ia querer ver. Chamava-se The Portuguese Protestants of Illinois. Achei engraçado e maravilhoso. Mas escrever um livro sobre isso foi complicado. Não sabia como contar a história, não sabia quem seria a personagem principal. Nessa altura fui contratada para dar aulas em Harvard, então fiz as malas na Califórnia, atravessei o país. E a caixa que tinha todo o meu material de pesquisa estragou-se. Ainda a consigo ver no chão e surgiu um artigo sobre um homem que cresceu na prisão com a mãe, condenada à morte por heresia. E pensei: "Oh, é o teu livro"."

Muitos anos e muitas reviravoltas depois, o resultado está aí. "Reescrevi o livro tantas vezes que é uma criatura completamente diferente. Eu sou uma pessoa diferente. Aconteceram tantas coisas durante este tempo: perdi o meu pai, enquanto o estava a escrever, a minha mãe sempre me escreveu uma carta maravilhosa de cada vez que publiquei um livro e esta é a primeira vez que não vou receber uma, depois de a ter perdido em novembro", lamenta Katherine. E garante que o resultado final não seria o mesmo sem a sua editora, Megan Lynch, da Faltiron/Macmillan. "O meu agente enviou o livro numa terça à tarde. É um livro comprido. Mas na manhã seguinte recebi uma nota enviada ao meu agente a dizer: "Estive a ler a noite toda, grande feito, vamos falar". Ela trabalhou comigo durante mais de um ano a editar o livro. Cortei algumas personagens secundárias, livrei-me de alguns enredos secundários, dei mais destaque à história principal. E agora é um livro muito melhor", garante Katherine.

E se nos Estados Unidos já está à venda, Above the Salt também vai chegar a Portugal, pela mão da Leya/ASA. "Estou muito feliz. Porque querem trazer-me para fazer a promoção. E tenho excelentes memórias de quando a ASA me trouxe para promover Mariana. Na altura fui entrevistada pela Maria Teresa Horta. Acho que foi ela que me chamou "a nossa prima americana". Tocou-me muito. Ela era uma das minhas heroínas. E não podia ter sido mais generosa. Escreveu um grande artigo sobre mim. Tive muita sorte", recorda.

Para Katherine o sucesso literário chegou com Saudade, editado em 1994, mas sobretudo, três anos depois, com Mariana, a história de Mariana Alcoforado, a freira considerada como autora d"As Cartas Portuguesas, dirigidas a um oficial francês com quem terá tido uma relação que chocou o Portugal do século XVII. Ora é essa história que vai agora ter nova edição, à boleia de Above the Salt. Para já, é tempo de tradução e Katherine calcula que o seu novo livro chegue às bancas em português dentro de um ano.

Por agora, veio retemperar forças antes do regresso aos Estados Unidos e de um outono dedicado à promoção do livro. Katherine destaca o trabalho "fantástico" do pessoal da publicidade e marketing da Flatiron: "O meu marido lembra-se dos primórdios da edição na Random House, com o pai, e diz que é uma editora à antiga. Escolhem poucos livros e dão-lhes todo o apoio".

Christopher é uma constante na conversa. Prestes a completar 82 anos, o autor e compositor ficou em Nova Iorque, na nova casa que ambos compraram, uma milha acima da anterior, agora na rua 82. Os dois conheceram-se ainda na década de 1980, mas só em 2007 é que se reencontraram, no lançamento de um livro no Bellevue Hospital. Essa história já Katherine e Christopher me tinham contado em Nova Iorque. "Foi muito romântico. Eu estava de visita a Nova Iorque e beijámo-nos no táxi e ele deixou-me no hotel. Sentei-me na cama, triste, quando de repente o telefone tocou e ele disse: "Só queria ouvir a tua voz outra vez". Naquele momento, Katherine soube que a sua vida tinha mudado. "Soube que era a pessoa certa. Soube simplesmente. Um pouco como quando estamos a escrever e nos soa bem". Casados desde 2015, a escritora e o compositor, filho do fundador da editora Random House, atravessaram juntos a pandemia, mas longe de os afastar isso só os aproximou. Afinal ambos estão habituados a trabalhar em casa e a partilhar o espaço, respeitando o outro. E Katherine não esconde o orgulho nesta relação que, garante, não precisa de trabalho. Apenas acontece.

Falar com Katherine sobre o seu trabalho é também falar do pai e de como este influenciou a sua vida e as temáticas sobre as quais escreve. Augusto Vaz (mais tarde americanizado para "August") nasceu na Califórnia, mas a mãe morreu pouco depois e o pai levou-o de volta para os Açores. "O meu pai cresceu na Terceira, na aldeia de Agualva. O meu avô e a mãe criaram-no até o meu avô voltar a casar-se. O meu pai devia ter uns 8 anos quando voltaram para a Califórnia", contara-me Katherine anos atrás.

Agora, ainda a recuperar do embate da morte da mãe, Elizabeth, uma nova-iorquina de origem italiana e irlandesa, a escritora diz-se agradecida por ter tido a oportunidade de estar junto de ambos os pais antes de morrerem. E acrescenta: "Eu e o meu pai éramos muito próximos. Ele é as raízes portuguesas em mim. Sempre acreditei que escrevi tanto sobre a cultura portuguesa na América porque a mãe dele morreu pouco depois do parto. Eu aparentemente tinha o rosto dela. As pessoas chegavam ao pé de mim nas festas e nos festivais e diziam "Oh meu deus ela parece mesmo a Xica". Eu só soube quem era aos 12 anos. Mas era muito próxima do meu pai. Ele era um professor do Secundário muito amado. Ainda hoje recebo cartas de antigos alunos dele. E passaram 50 anos. Mas ele era também um artista. Pintava muito. Fazia jardinagem. As pessoas dos Açores são excelentes jardineiros. Eu tenho um jardineiro que é pai no meu novo livro - e sei que é ele", conta emocionada.

Com a refeição a chegar ao fim, é quase inevitável falarmos da América hoje. E Katherine não esconde o seu receio em relação ao futuro. "Quando se vive em Nova Iorque não passa um único dia em que não sejamos expostos a pessoas de outros países, de outros locais, com outras ideias. É um sítio maravilhoso para se viver. E eu sou da Califórnia, que é também uma zona de grande mudança e de muitas culturas. Mas tenho noção de que o que a América dá o mote para o que acontece em muitos outros sítios. E uma minoria conseguiu perceber o sistema. Quando as pessoas têm medo da mudança, ficam zangadas. Uma das consequências é, por exemplo, a proibição de livros. Para quem, como eu, é uma defensora da criatividade, é assustador. E temos de o combater", sublinha.

Quanto às presidenciais do próximo ano, em que do lado democrata a recandidatura de Joe Biden parece uma certeza e do lado republicano, apesar de todos os problemas judiciais, Donald Trump se perfila como o mais provável candidato, Katherine garante: "Vou suster a respiração. Não acredito que aquele cujo nome não deve ser pronunciado vá ganhar. Esta foi a primeira vez na nossa história em que vimos alguém tentar mudar o resultado de umas eleições. Nunca tinha acontecido. É preciso estarmos vigilantes e lutar contra isto. Porque há coisas feias a acontecer." Sem nunca referir Trump pelo nome, a escritora não deixa de ter esperança - afinal, "o mundo pode surpreender-nos. Obama foi eleito. E não foi assim há tanto tempo. Isso foi uma explosão de alegria. E quando Biden foi declarado presidente, eu e o meu marido metemo-nos no metro para Times Square para celebrar. Fomos celebrar o fim do pesadelo." E o que acha do atual inquilino da Casa Branca? "Biden tem sido um bom presidente. É mais velho. Mas Obama gostava dele e isso funciona para mim. Há esperança. Lembre-se que Obama surgiu de repente. É o exemplo de que a vida nos pode surpreender, mesmo que agora não estejamos a ver quem pode ser o próximo líder. Obama era um estadista. Trouxe elegância. Ao contrário daquele cujo nome não podemos pronunciar, que só trouxe o pior da América: egoísmo, ambição, maldade e desonestidade." E recorda este episódio: "O meu marido teve uma cirurgia de coração aberto no dia em que aquele cujo nome não podemos pronunciar foi eleito e, como ele é muito divertido, dizia: "Pelo menos se morrer hoje não tenho de viver esta presidência" [risos]."

Terminamos a refeição, eu com um café e Katherine com um cappuccino. A conversa andava à volta de a escritora se sentir ou não uma turista em Lisboa e não resisto a brincar dizendo que pedir um cappuccino depois de almoço, isso sim, é de turista. Katherine ri-se e confessa que aprecia a bebida. "E quando se gosta de uma coisa, porquê só tê-la quando os outros acham que faz sentido?"

Já fora do restaurante, sob o sol escaldante desta tarde em que os termómetros chegaram aos 40 graus, despedimo-nos com um abraço e a promessa de não voltarmos a esperar seis anos pelo próximo almoço. Em Lisboa ou em Nova Iorque.

helena.r.tecedeiro@dn.pt

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