A praia que morreu, ressuscitou e pode acabar de vez

É a praia de mar mais próxima da capital e foi dos primeiros locais de veraneio dos lisboetas, no início do século XIX. A poluição, as construções ilegais e o lixo interditaram-na durante as últimas décadas, mas volta agora a ser frequentada. A ameaça de destruição por um projeto imobiliário suscitou um movimento para a salvar.
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São 11.30 da manhã de uma terça-feira de agosto. No areal na Cruz Quebrada, onde há cinco anos só se via lixo e destroços (assim a filmou a SIC em 2010 num programa sobre "as ex-maravilhas de Portugal") e hoje se exibe praticamente impoluto, à exceção de seixos e pequenos pedaços de madeira, estão umas vinte pessoas em veraneio. Caso de Benjamin, estudante de 27 anos, e da irmã Sophie, de 17, naturais de Friburgo, no Sul da Alemanha, que chegaram ontem a Lisboa para uma estada de seis dias e perguntaram no hotel por uma praia. "Disseram-nos para apanhar o comboio para Cascais, mas vimos esta com bom aspeto e sem muita gente e saímos. Como trazemos máquina fotográfica achámos que aqui seria mais seguro." Benjamin, cuja pele muito branca começa a adquirir o tom distintivo da lagosta suada, acha a água "horrivelmente fria" mas já foi ao banho várias vezes. Não é único: as águas da foz do Tejo e do Jamor, apenas a 15 minutos de comboio de Lisboa e ao lado da estação, já não desaconselham mergulhos.

E não são só frequentadas por turistas extraviados: nos dias de folga de vendedora do El Corte Inglés, Sandra Cardoso, de 36 anos e moradora em Linda-a-Velha, está aqui batida e o tom caramelo atesta-o. "Venho sempre que posso, muitas vezes sozinha, mas também com o meu filho de 13 anos." Fã dos transportes públicos e, apesar de ter carta, sem carro, Sandra vem a pé - "levo dez minutos" - e elogia "a calma" de uma praia "pouco conhecida" que só ao fim de semana se enche. Lamenta no entanto que "faltem umas casas de banho e um apoio, um bar, um café, qualquer coisa". E quanto ao projeto (ver texto ao lado) que promete destruí-la, abana a cabeça: "Não acredito que isso vá para a frente."

Ana Ramalhete e o marido José, de 67 e 73 anos, moradores na Cruz Quebrada, também não querem acreditar. José frequenta a praia desde que, há 50 anos, veio trabalhar na zona. "À saída do trabalho passava aqui um bocado com os colegas." Nesse tempo a água ainda estava praticável, como de resto estaria mais tarde: uma das suas filhas, nascida em 1972, "adorava tomar banho mesmo no inverno". Era Ana que a trazia, como agora traz os netos ou, no caso, as netas, Ana Sofia, de 11 anos (hoje também na companhia da mãe, Carla, de 44 anos, gerente de um ginásio em Linda-a-Velha) e Maria Inês, de 4, mais a cadela Conchita, geralmente para passar a manhã.

Nascida em Moçambique, Ana veio com os pais para Portugal em 1968 e trabalhou na Bertrand (onde conheceu o marido), na revista Flama e na União Gráfica. Quando casou, fixaram-se na Cruz Quebrada, na casa onde ainda vivem. "Vinha muito aqui com os meus filhos porque as finanças não davam para ir a outras praias", relembra. "Mas a partir de uma certa altura não os deixava tomar banho, isto ficou muito sujo. Agora já se pode porque a água está limpa. E os meus netos nunca tiveram problemas, nem sei de quem tenha." Maria Inês, entretida com construções na areia à beira de água, não responde a jornalistas, mas Ana Sofia adianta que prefere piscina: "A água aqui é fria e há pedras [no leito]." A avó sorri: "Não é a melhor, mas costumo ficar com elas agora nas férias, e como não tenho carta e o meu marido nem sempre está disponível, a única praia onde posso levá-las é esta."

Dois séculos a banhos

Não, a praia da Cruz Quebrada não é das de postal, muito menos de sonho. Mas é uma praia, e real, e ali mesmo à beira da estação de comboio, e no último domingo, assevera José Ramalhete, contavam-se, apesar de o tempo não estar grande coisa,12 chapéus-de-sol.

É aquilo que se chama uma "praia urbana", e das primeiras do país com vocação de veraneio. Aliás, segundo a tese de mestrado em história contemporânea de Pedro Alexandre Guerreiro Martins, Contributos para uma história do ir à praia em Portugal, as "primeiras barracas de banhos" terão sido erguidas nas praias de Pedrouços e Cruz Quebrada a partir das primeiras décadas do século XIX, inaugurando a tendência de banhos de mar depois de, de acordo com os testemunhos da época, se ter durante o final do século anterior verificado um interesse crescente pelos banhos no rio, como se dá conta numa notícia de 1791 na Gazeta de Lisboa: "Faz-se saber ao Público que a Máquina para tomar banhos, que costuma estar no sítio da Junqueira, e em que há dois grandes quartos para a gente se vestir (...) se achará brevemente a nado para todas as pessoas que dela se quiserem servir, as quais devem logo dirigir-se ao dono, e pagar-lhe as suas subscrições (...)."

Os turistas que tomam banho no Terreiro do Paço, erguendo sobrancelhas de muitos "puristas", estão afinal a retomar uma "tradição" secular - como o é a da frequência da Cruz Quebrada. "Formalmente aqui ainda é rio mas a água é salgada", diz Tomaz Bairros, de 49 anos, jurista, morador há sete na Cruz Quebrada. A praia foi uma das razões para vender o apartamento em Alfama e comprar outro aqui, num prédio a 300 metros do areal. "Vim pelas vantagens de estar junto ao mar e do parque do Jamor. E frequento bastante a praia, mais até no inverno do que no verão; quando vou correr [há uma pista/ciclovia ao longo do rio/mar] e o mar está liso dou um mergulho. Obviamente que uma praia do rio urbanizado não tem a mesma qualidade que o Guincho ou a Costa de Caparica. Mas pode ser melhorada, nomeadamente no que à limpeza diz respeito." Tomaz iniciou aliás, em abril, uma campanha nesse sentido. "Peguei num ancinho e enchi sacos e sacos de lixo." A iniciativa contagiou outros moradores e frequentadores da praia, que começaram a organizar-se no mesmo sentido, tendo alguém escrito na parede, em letras garrafais, "Leva o lixo". E coincidiu com o recrudescer do movimento de combate ao projeto imobiliário que prevê para ali uma marina. "No concelho de Oeiras só 20% da costa é praia. Os outros concelhos gastam fortunas para fazer praias e nós temos aqui uma que pode ficar muito melhor e querem destruí-la?", argumenta Tomaz. "Não faz sentido nenhum. Façam a marina, se a querem, mais adiante, onde não haja areia."

"Para viver no Dubai ia para lá"

Maria Antónia Frasquilho, psiquiatra, de 58 anos, concorda: "A praia tem sempre gente e agora está até mais limpa do que a de Santo Amaro. O grande estigma é a envolvente, que é má, por causa das instalações desativadas da fábrica de fermentos e da Lusalite [ambas propriedade do grupo imobiliário autor do citado projeto]. Quanto a marinas, temo-las de 500 em 500 metros, todas vazias." Suspira. "Se quisesse viver no Dubai tinha ido para lá. Sinto-me espoliada em relação às minhas escolhas. Prevê-se paraaqui um muro de betão, um projeto que desrespeita o passado, coisas sem caráter nem beleza. Ora o que me atraiu nesta zona - vivia em Lisboa até há 15 anos - foi uma forma de vida tranquila, saudável, com poucos problemas de poluição, o Estádio Nacional perto, e vistas largas, de rio (se o empreendimento for para a frente fico sem parte). Como psiquiatra, interesso-me pelas questões da ecologia e do viver saudável em termos mentais e de como é importante ambiente que o propicie."

Ao contrário das expectativas de lucro, as de bem-estar e equilíbrio psíquico não costumam fazer vencimento nos tribunais. Mas a recém-formada associação Vamos Salvar o Jamor (criada a 14 de julho), da qual Maria Antónia faz parte, acredita que pode impedir o que consideraser um projeto "ilegal". É como o qualifica a jurista linguista Margarida Novo, de 54 anos, da direção da associação. "No Plano Diretor Municipal antigo, de 1994, o espaço das fábricas deveria ser uma zona ambiental e de fruição livre das populações quando aquelas deixassem de laborar. E a Câmara, em vez de executar a sua opção estratégica, transformou o uso dos terrenos no plano de pormenor, aprovado no ano passado, e permitiu construir com elevada volumetria. Estamos convictos de que o plano é ilegal face à lei." Além disso, Margarida, que vive numa casa arrendada e põe a hipótese de se mudar se o Porto Cruz (nome do projeto) for para a frente, está esperançada na reação da população: "Cada vez mais as pessoas estão conscientes do problema e ficam chocadas com a possibilidade de crescerem aqui arranha-céus. Durante muito tempo em Portugal as pessoas não viram o espaço público como coisa sua, mas creio que isso está a mudar." Outra coisa que está a mudar, crê, é a relação com o carro. "Esta praia tem cada vez mais gente e a Câmara deveria estar atenta a isso. As pessoas gostam de ter uma praia para a qual se vai a pé, cada vez querem menos pegar no carro. É uma tendência mundial, aliás: Hamburgo (na Alemanha), por exemplo, tem imensas praias no rio e estão sempre cheias de gente, apesar de, se comparadas com esta, serem uma porcaria."

De chumbado a aprovado em dois anos

Cinco edifícios, um dos quais com vinte andares (numa zona onde o máximo atual são cinco ou seis), um hotel, um centro comercial, 325 fogos de habitação, uma piscina oceânica e uma marina, ocupando mais de 27 hectares (mais de metade do Estado ou municipais) à margem da foz do Tejo e do rio Jamor, correspondendo a um investimento de 250 milhões de euros, 49 dos quais públicos. É o "Porto Cruz", projeto da autoria do grupo imobiliário SIL - proprietário da área industrial desativada onde funcionaram até 1999 a fábrica de telhas Lusalite e a de Fermentos Holandeses - e tem pelo menos dez anos no papel: em setembro de 2005, o DN anunciava-o, pela boca da então presidente da Câmara de Oeiras, Teresa Zambujo. Apesar de esta frisar que a compatibilidade do mesmo com o Plano Diretor Municipal estava ainda em apreciação, não parecia pôr a hipótese de um chumbo. Mas foi isso que sucedeu, em 2012: a Comissão de Coordenação de Lisboa e Vale do Tejo considerou-o incompatível quer com o PDM de Oeiras (por apresentar "uma área de construção muito superior à área de construção máxima" nele prevista) quer com o Plano Regional de Ordenamento do Território da Área Metropolitana de Lisboa: "Na globalidade, a proposta não se adequa às características da área em presença, colocando pressão urbanística num território sensível, ribeirinho, aumentando os índices urbanísticos existentes em detrimento da contenção que o PROT-AML estabelece." A avaliação ambiental é reputada de "insuficiente" e a destruição da praia para construção da marina criticada, frisando-se o facto de não ser "apresentado qualquer estudo que fundamente a opção dessa infra-estrutura em detrimento da melhoria das condições da praia actual", assim como que a praia "substituta" prevista (noutro local) é de "reduzida dimensão". Igualmente negativo foi o parecer da Autoridade Nacional de Proteção Civil, que avalia o local como de cheia e não encontrando no projeto "medidas concretas de minimização e mitigação dos riscos existentes". Ainda assim, o Porto Cruz seria aprovado em 2014 na Assembleia Municipal, depois de ter, anunciou a autarquia, "obtido parecer favorável de 23 entidades [incluindo a CCDR e a Proteção Civil] em sede de concertação".

Ao DN, o administrador executivo do grupo, Pedro Silveira, congratula-se pelo facto: "O plano de pormenor está aprovado e agora deve seguir-se em frente. Vai ser depois de quase 20 anos de trabalho e investimento um dos melhores projetos da Europa." Qualificando o movimento de contestação como "legítimo" e "com o seu espaço de ação no quadro democrático e legal que vivemos", considera que o período de consulta pública terminou. E vê a eventualidade de intervenção dos tribunais como pouco provável: "Todos os requisitos legais foram cumpridos e superados. Nada será desenvolvido em desacordo com o mesmo, pelo que não se vislumbra espaço legítimo para qualquer litigância. Muitos dos argumentos apresentados são falsos tecnicamente mas fazem algum sentido a leigos. E depois, sabemos, só falam os que estão contra; a larga maioria, mesmo que a favor, fica calada. Não é justo só porque não se gosta não se aceitar o projeto e tentar mandá-lo abaixo nos media." Adiantando que a SIL quer avançar para a execução "o mais depressa possível" e não está "preocupada com o mercado imobiliário" (na habitação, prevê que os clientes serão de classe média-alta e estrangeiros"), não indica data para a interdição da praia: "Não faz parte da nossa área de intervenção neste momento, pois ela está sob a jurisdição do Porto de Lisboa. No entanto, a marina prevê a manutenção de uma área de praia. Em compensação vai haver muitas infraestruturas de usufruto público e mais limpas do que a praia atual..."

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