A praga aliada
No meu conto favorito dos Contos do Gin-Tonic, de Mário-Henrique Leiria o narrador chega à noite ao seu apartamento, abre a porta do living e:
"Estavam lá três, sentados no divã. Verdes. Dos verdes nunca tinha visto (...) Não disse nada e fui até à cozinha, preparar uma sanduíche e uma bebida, com a sensação inconfortável de ter a noite estragada."
Nesse conto intitulado "Aliança", de pouco mais de três páginas, um dos mais longos da coletânea (Novos Contos do Gin) o narrador conta na primeira pessoa, num tom objetivo, plácido e resignado, a presença destes seres que se instalam no seu apartamento sem nunca percebermos porquê nem o que são. A não ser que são silenciosos, que deslizam e sobem paredes deixando um rasto de baba, que têm patas, que lhe comem as sanduíches e lhe vão destruindo as mobílias do apartamento. E que vão aparecendo cada vez mais e de várias cores.
"Os verdes estavam a arrancar o forro do divã e a olhar lá para dentro. Um dos roxos, de forma indefinida a aumentar e a diminuir, quebrava conscienciosamente o suporte metálico da estante. O negro já estava no teto."
Percebemos depois que os seres estavam a instalar-se um pouco por todo o lado: "Informou-se que três amarelos tinham acabado de dinamitar o Parlamento e que um grupo não identificado de cinzentos devorara o Presidente."
Eu e o meu grupo de amigos líamos muitas vezes este conto em voz alta nas noites de adolescência em que por entre músicas e copos, de gin também, descobríamos textos e passagens de livros que nos inspiravam ou faziam rir, como este.
Por essa altura formámos um grupo de teatro e chegámos a pensar adaptar este e outros invulgares textos do invulgar Mário-Henrique Leiria, que tinha morrido há pouco tempo de forma tão surreal quanto a sua obra. Foi o Mário Viegas quem acabou por fazê-lo e muito bem. Nós virámo-nos para os outros surrealistas portugueses e fizemos surreais recitais a partir de textos de Pedro Oom, António Maria Lisboa e Mário Cesariny de Vasconcelos (estreámos numa galeria de arte no Estoril, em 1982, a convite do seu diretor, Cruzeiro Seixas). Tinha 20 anos. Foi a minha fase surrealista.
Voltando ao conto, que é dos menos lembrados do Mário-Henrique Leiria, não tenho conhecimento de que tenha sido adaptado, creio que nem pelo Mário Viegas.
Ocorreu-me para esta crónica do 1864 sobre as pragas, não sei bem porquê. Não se percebe ao certo de que é que ele fala, a alegoria é obscura, e essa é uma das suas qualidades. Poderemos mesmo dizer que não é alegoria nenhuma. Nem tão-pouco se percebe porque se chama "Aliança".
O que me agrada é o tom tranquilo com que o narrador constata a ocupação do seu território pela mansa selvajaria de seres que ele não controla. Uma impotência convertida em observação in a matter of fact way. Um pânico anestesiado, certamente pelo gin tónico, que é de um irresistível humor negro.
Por outras palavras, dar conta de uma praga, em tempo real, ou seja, naquele tempo que há entre ser testemunha e, por fim, inevitavelmente, vítima.
Ao reler o conto no contexto do nosso presente não resisto ao que ele me evoca, como uma involuntária alegoria, ao iluminar com a sua luz negra este contexto mediático onde vivemos.
Os seres de várias cores que se vão instalando sem serem convidados nos nossos apartamentos e paulatinamente os vão destruindo e ocupando o espaço parecem-me muito as personagens das mitologias de pacotilha com que muitos de nós vão ocupando os dias e as noites.
Personagens dos infindáveis reality shows em que está transformada a arena mediática nas televisões e nos múltiplos ecrãs. Dos reality shows propriamente ditos aos infindáveis programas de tagarelice política, desportiva ou do social. Das claques e do onanismo das redes sociais. Dos tabloides e dos eventos.
Como uma praga a alastrar o seu rasto de baba viscosa num ruidoso rumor que vai ocupando os espaços públicos e privados de cada um com uma permanente feira popular em modo de diversão contínua destruindo livros, filmes, obras de arte, espaços íntimos, numa voragem cada vez mais consentida e inevitável.
Uma praga a propagar-se á frente dos nossos olhos, sem que ninguém a possa evitar.
Ou não. Se calhar estou só a delirar. Deve ser do gin tónico.