Foi o cristianismo que introduziu alterações profundas no entendimento e na prática da misericórdia. No coração dessas transformações está o duplo sentido com que a misericórdia surge na doutrina cristã, isto é, ao mesmo tempo como um atributo de Deus e como uma exigência para os homens, um duplo sentido resumido na afirmação de Cristo: "Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso" (Lc. 6, 36)..A misericórdia cristã parte de um reconhecimento da debilidade e carência alheios, e de uma comoção diante desse sofrimento. Santo Agostinho explica: "O que é a misericórdia? Não é outra coisa senão carregar no coração um pouco da miséria [do outro]. A palavra "misericórdia" deriva da dor pelo "mísero". Miséria e coração: ambas as palavras estão contidas naquele termo. Quando o teu coração é tocado e atingido pela miséria do outro, então isso é a misericórdia". Este foi o caminho pelo qual o cristianismo foi anunciando a necessidade do exercício da misericórdia como um imperativo para os crentes..Uma insistência muito particular na centralidade da misericórdia, como modo de compreender o divino e na relação dos homens modernos com os seus semelhantes, veio a caracterizar o pontificado do Papa Francisco. Quando o Papa fala com insistência na necessidade de sermos misericordiosos, uma leitura algo superficial poderia julgar que nos convida simplesmente a sermos "mais morais" - algo que os modernos sempre disseram ser. Contudo, o apelo é mais profundo e, em certo sentido, mais incómodo para todos nós, pois aquilo a que o Papa nos convida é a viver com um coração mais pobre e que, consciente da sua própria debilidade, se torne, por isso, mais atento e disponível para o sofrimento dos outros..A possibilidade da misericórdia é um coração pobre, precisamente porque o desejo de ser misericordioso nasce do desejo se ser com os outros como Deus foi connosco primeiro. O que habita no coração do misericordioso não é a ambição de uma moralidade mais pura, nem de uma retidão ética mais íntegra, para além e para cima da justiça. O que habita é a comoção do coração pobre, que reconhece em tudo e na vida, um dom, e que dá aos outros porque sabe que, em última análise, tudo o que tem também lhe foi dado.