A porta da noite é do D'Artagnan
natacha cardoso
"Mas de onde é que eu conheço esta cara? Desculpe, você é o Brian Eno?" Era mesmo o famoso compositor que estava a beber, sozinho e tranquilo, um vodka tónico no Incógnito. D'Artagnan, como Rui Rebelo da Silva é conhecido desde que usa bigode (e, já com a alcunha da personagem de Alexandre Dumas, foi-o retorcendo ainda mais, num jeito de homenagem a Salvador Dalí), viu entrar na discoteca onde trabalha desde 1998 figuras como Iggy Pop ou Nick Cave.
Mas também barrou a entrada, na sua vida de carismático porteiro da noite, a Kid Creole e às suas Coconuts (na década de 80, banda cheia de fama e de vaidade) e ao secretário de Estado Macário Correia. "Sabe quem é que eu sou?", indagava o governante, na época em campanha pelo encerramento dos bares à meia-noite e das discotecas às duas . "Precisamente por saber é que não vou deixar entrar V.ª Ex.ª, que anda a tentar roubar-me o pão para a boca", retorquiu, no seu jeito sarcástico.
Em 27 anos a trabalhar na noite recorreu sempre ao método dos "dois dedos de conversa" para travar os indesejáveis e garantir a harmonia entre as pessoas que estão na pista e no balcão. Mas antes de se instalar como profissional à entrada dos bares e discotecas Nova, Johnny Guitar, Califórnia e Incógnito - "agora, tenho de ir tirar um curso de porteiro, nível 4", ri-se ao contar - , Rui Rebelo da Silva foi, sobretudo, desenhador e ilustrador.
Afinal, herdou o gosto da família, pois o avô, Artur Moreira, que foi chefe da secção desportiva do DN e esteve ligado à fundação do Record, editou Os Ridículos (publicação satírica em que colaborou Stuart de Carvalhais) e o pai, que manteve as instalações daquele jornal humorístico na Rua da Barroca, criou ali a editora Livros da Cidade, publicou a revista Cara Alegre e colaborou na campanha gráfica da candidatura de Delgado - acabando por "ir bater com os costados a Peniche", de onde seria retirado pelo advogado (e presidente da Gulbenkian) Azeredo Perdigão.
D'Artagnan, primo de José Ruy e que cresceu com Calderon Dinis e outros artistas plásticos como visitas lá de casa, cedo começou a tentar copiar os desenhos de E. T. Coelho, Vítor Péon ou José Garcês que via nas revistas Tintin e Cuto - e também nas colecções que herdara, como a d'O Cavaleiro Andante. E, dos jornalinhos da escola para uma BD publicada na revista Spirou ou umas pranchas com a batalha de Aljubarrota que editou no DN, passou a ganhar a vida com diversas formas de ilustração.
Ainda estudou artes gráficas e design industrial em Barcelona antes de fazer cartoons para uma vasta galeria de publicações, do Sete ao Volante, e de pintar as telas gigantes para os cinemas anunciarem, na fachada, os filmes em cartaz. Em simultâneo, foi decorador de bares e discotecas, cenógrafo em espectáculos dos Xutos & Pontapés e dos Rádio Macau, criador de capas para discos de Jorge Palma (Palma's Gang ao Vivo no Johnny Guitar) ou dos Censurados (Sopa).
Assumido "pé-de-chumbo" a dançar, aos 17 anos foi, pela primeira vez, para uma porta, a do Archote, que ficava na lisboeta Avenida Defensores de Chaves. Depois, o porteiro que usa o histrionismo em vez da violência para seleccionar à entrada, tornou-se hábil na forma de distinguir "o bom, o mau e o vilão", na síntese do cinéfilo que, além de enaltecer obras como O Vale era Verde (Ford), O Sétimo Selo (Bergman) ou M (Lang) - "e quem é que não gosta do Casablanca?" -, fala com orgulho do período em que trabalhou no arquivo da Cinemateca. Afinal, assim como ele pode contar que se tornou amigo de músicos de bandas tão famosas como The Cult ou Stranglers, os seus avós conviveram com nomes lendários do cinema chamados Louise Brooks ou Robert Mitchum.