A política 'clonizada'

Publicado a
Atualizado a

Ojantar que reúne anualmente o Presidente dos Estados Unidos e os jornalistas destacados para acompanhar a actividade da Casa Branca costuma ser um momento propício à paródia política, apesar da formalidade da indumentária (smoking e vestidos compridos). Desta vez, porém, o Presidente Bush prescindiu dos números de autocaricatura e dispensou as confrangedoras piadas da praxe, mas fez-se acompanhar por um sósia - que, presume-se, num cenário de inspiração "hollywoodesca", poderia perfeitamente ocupar o seu lugar, numa imitação de... Saddam Hussein.

Bush optou por apagar-se perante o sósia, delegando nele as despesas das graçolas habituais. Mas o que nem Bush nem os seus convidados terão assumido é que a "clonização" do Presidente americano constitui uma metáfora pertinente da política contemporânea - e não apenas nos Estados Unidos -, sem que haja sequer a necessidade de inventar sósias quase perfeitos.

Quando o ministro português dos Assuntos Parlamentares, Santos Silva, declara placidamente que é preciso recorrer a uma "ginástica discursiva" para distinguir o PS do PSD (neste caso seria a questão da "paridade"), as diferenças políticas passam a residir apenas na cereja que se põe em cima do bolo, como assinalou Mário Mesquita numa arguta crónica no Público. Ora, sendo os bolos cada vez mais parecidos - como Bush e o seu sósia - só mesmo uma cereja decorativa (como uma qualquer folclórica "paridade" cultivada pe- la "esquerda moderna") pode simular a dife-rença.

O problema não está em admitir que, em tempos de globalização, o espaço das alternativas económicas e políticas se encontra drasticamente condicionado e reduzido. O problema está no império crescente do conformismo e do cinismo políticos, sustentando os privilégios e a embriaguez do exercício do poder a que alegremente se rendem personagens como o ministro socialista.

A dimensão trágica da política vê-se assim diluída num vaudeville saltitante, uma farsa grotesca de aparências que saltam da garrafa do poder como bolhas de champanhe. Em vez do parler vrai, o parler faux. A autenticidade das convicções, o compromisso com a verdade, o respeito pelos eleitores são atirados sumariamente para o lixo das mercadorias que ultrapassaram o prazo de validade e substituídos, na "ginástica discursiva", pelo rentável contrabando dos princípios e dos valores.

Daí que se procure esconder e disfarçar, através de uma estratégia de simulacros de marketing, os constrangimentos que hoje se deparam à acção política. É o que acontece quando assessores, consultores e tutti quanti decretam com a maior desenvoltura do mundo que "fazer jogging em Luanda vale mais que 30 discursos". Mesmo que isso seja eventualmente factual - e porventura até é, segundo os códigos da lógica espectacular vigente -, não deixa de parecer obscena a celebração eufórica e cínica dessa constatação, como se o apagamento do valor da palavra, do discurso, a favor de um show-off inócuo e burlesco representasse o triunfo definitivo da pós-modernidade política e um progresso para a democracia.

Um dos mais conhecidos comentadores políticos americanos, Joe Klein, analisa num livro (Politics Lost) de que a revista Time publicou significativos excertos, o papel dos assessores e consultores políticos no esvaziamento do discurso político - e de que o episódio do sósia de Bush nos trouxe agora uma simbólica caricatura. Segundo Klein, os chamados "marqueteiros", obcecados com as sondagens e os focus groups, funcionam como "reaccionários literais", formatando o discurso político segundo padrões estereotipados de "clonização" que apagam a autenticidade, a espontaneidade e a própria personalidade dos candidatos presidenciais (como foram os casos de Al Gore e John Kerry).

O esgotamento dessa metodologia castradora leva Klein a preconizar para as eleições de 2008 que o vencedor será aquele que ignorar a fixação no "espelho retrovisor" e, entre outras coisas, "acreditar pelo menos numa ideia principal, ou num programa, que tenha menos de 40% de apoio nas sondagens".

A política "clonizada" (ou a "clonização" política) parecia também solidamente implantada em Portugal até que Cavaco Silva, candidato minuciosamente "programado" na campanha presidencial, prescindiu de ser um "clone" de si próprio no discurso do 25 de Abril. Mas presumo que nem os seus apoiantes mais calculistas nem os seus detractores mais sectários se terão apercebido disso.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt