A poesia é um substantivo (feminino)

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Adília Lopes é uma escritora tão produtiva como desigual, pelo que beneficia claramente com uma boa antologia. Mas Caras Baratas não é essa antologia. O critério da escolha de poemas, de acordo com o gosto pessoal de quem organiza é sempre discutível, mas neste volume o problema reside sobretudo na unidade temática. A organizadora, Elfriede Engelmayer, destaca na obra de Adília o tema "Mariana Alcoforado", recuperando todos os poemas que se referem à famosa (e imaginária) freira de Beja, acrescentando outros sem esse nexo. O tema "Mariana" é incontestavelmente central na poesia de Adília, mas a dimensão global da obra fica afectada por este recorte tão estreito. A antologia tem como fonte apenas os poemas coligidos em Obra (2000), e nisso faz bem, porque os livrinhos posteriores são demasiado frágeis. Em todo o caso, se folhearmos a substancial Obra (um volume altamente recomendável, editado pela Mariposa Azual), fica claro que o isolamento de um tema ("Mariana" ou outro) diminui o nosso entendimento desta poética. Caras Baratas tem algum interesse (porque selecciona alguns dos melhores poemas da autora) mas é um passo em falso (porque passa por cima de alguns dos melhores livros de Adília, como O Poeta de Pondichéry, 1986).

Ao longo da antologia, que compreende quinze anos de escrita (1985-2000), encontramos uma notória progressão no que diz respeito a técnica e mundividência enquanto esta fica mais rica, a primeira empalidece. Quando Adília se estreia, em 1985, aparece com uma obra nova e original. Eram poemas curtos (mas não demasiado curtos), sem pontuação, com uma métrica segura, e que pescavam em todas as águas lexicais possíveis (provérbios, anedotas, jogos fonéticos, clichés, línguas estrangeiras vivas e mortas), quase sempre em subtil "arte poética" (uma constante ao longo dos anos). Não foi uma ruptura, mas foi certamente uma novidade, que tornou a poesia portuguesa mais livre e mais lúdica. Mesmo se existe uma indesmentível tragédia pessoal sob esse ludismo. A novidade esteve sobretudo numa fortíssima componente autobiográfica e na originalidade com que se apresentava esse faceta mais íntima e quase inconfessável. Esta poesia recuperava, com alguma coragem, a frustração (nomeadamente a frustração sexual) como tema poético, fazendo uma interessante releitura da poética feminista o sexo tematizado explicitamente, mas desta vez na perspectiva de uma mulher que se assumia como alheia a toda a felicidade carnal. Assim se explica o registo aparentemente ingénuo, próprio de uma vivência púbere em contexto repressivo, e afastado de um imaginário de emancipação sexual mais típico do feminismo poético. Lembremos porém que esse tom adolescente é igualmente escabroso: tão depressa aparece a palavra "maminhas" como a palavra "fodas". Como se tem dito: é uma mistura de imaginários entre a Condessa de Ségur e o Marquês de Sade. Nesta poesia, a linguagem sexual sempre foi crua, mas era mais uma página numa autobiografia sem filtros, uma autobiografia com inúmeras referências a gatos, médicos, freiras e demais bricabraque. E com uma assunção do corpo (do corpo disfórico) num cenário de solidão e procura de afecto: "Cobras em vez de cabelos / afugentam os meus pretendentes / quem me dera ter os cabelos lisos / e usar franja / como a Sylvie Vartan / e a Françoise Hardy / Medusa colchão no toucado / Rapunzel de tranças cortadas / pela madrasta e pelo amante / suplico à Dona Lena / que me decapite / Judite Dalila Salomé Vidal Sassoon / me valham / o turíbulo da minha alcova / é varrido no chão / e deitado fora / pela Paula / a minha mãe mete-lhe / a gorjeta no bolso da bata / cumprido o sacrifício ritual / e eu Joana d'Arc / Maria Antonieta mártir das modas / arrefeço na Escola politécnica" (pág. 136). Características que tornam alguns poemas quase incomodativos pela dúvida instalada sobre o carácter efectivamente literário do textos (a autora ironizava "escrevo para casar"). Um mundo entre o kitsch e o melodrama que empurrou o conceito do "poético" para novos caminhos, supostamente estranhos a uma metafísica (o que fez sucesso no underground e na universidade). Em suma, uma poesia sem aura. "Deus é a nossa / mulher-a-dias / que nos dá prendas / que deitamos fora / como a vida / porque achamos / que não presta // Deus é a nossa / mulher-a-dias / que nos dá prendas / que deitamos fora / como a fé / porque achamos / que é pirosa" (pág. 188). A ambiguidade do texto é evidente.

Convém porém que não se esqueça que esta é uma poesia culta, na qual a simplicidade quase diarística surge no meio de alusões a Horácio, Mallarmé, Joyce, Anne Sexton ou Agustina. Alusões feitas sempre material de poesia, em epígrafes, citações ou reescritas, como acontece em Florbela Espanca (1999). A singularidade desta poesia reside também nessa faceta "pop" (a autora sempre assumiu com gosto essa designação). Não existe diferença entre poemas sobre a literatura e poemas sobre a paixão, a menstruação ou a masturbação. Barthes ou Dale Carnegie convivem com aparente naturalidade. Esta foi a poesia que recuperou para o poético o autocar- ro, o deficiente, o "pente sem dentes". Nunca foi para todos, nem nunca será, e isso é bom.

Acontece que, como a antologia documenta, os poemas foram ficando progressivamente menos ricos em termos formais, mais previsíveis, muito dependentes de uma leitura em sequência. É o caso de Maria Cristina Martins (1992) ou Sete Rios Entre Campos (1999). Sendo que os textos, paradoxalmente, ficavam mais complexos, sobretudo dado um crescente cinismo (ou aceitação) e uma aproximação ao cristianismo (com visível adensamento de referências bíblicas). Essa complexidade passa para o registo confessional. A educação sentimental patética lembra a inglesa Wendy Cope, mas também revisita o cânone português, de "Mariana" a Irene Lisboa. Cresce uma ambivalência sobre o que não se tem a normalidade estatística ("casa, emprego, marido e filhos") começa a ser corroída pelo cepticismo e pela paródias a figuras masculinas míticas, de Adão a Chamilly. Mas a complexidade dessa mudança não é eficaz porque Adília recorre cada vez mais ao poema como piada (na tradição brasileira), nem sempre com grande resultado. Ora isso é muito visível na segunda metade desta antologia, porque o filtro temático impede uma selecção mais prudente (O Regresso de Chamilly, de 2000, é integralmente reproduzido). Além disso, não faz grande sentido a inclusão de textos em prosa como os de Irmã Barata, Irmã Batata (2000) numa antologia poética. Os textos são muito interessantes, em registo directo, seco, de aforismo fatal ou anotação banal, mas fazem parte de outro caminho, estranho à lógica deste volume. Caras Baratas não é uma má antologia, mas ainda não é a antologia definitiva de que a obra de Adília Lopes claramente necessita.

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