A poesia de Ron Padgett é cinema
Um poeta e o cinema. Jim Jarmusch é um cineasta conhecido por fazer filmes com relações explícitas com a literatura. Homem Morto, a partir de William Blake, talvez tenha sido o pináculo desse desejo, mas agora, neste Paterson (em exibição), leva o poema mais ao alto. Uma elevação com cortesia dos poemas de um amigo próximo, o poeta norte-americano Ron Padgett, homem fundamental do circuito da New York School e próximo de sumidades como Jack Kerouac, Allen Ginsberg e tantos outros do movimento Beat.
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Sentado numas escadas do cinema Monumental, aquando do Festival LEFFEST de novembro passado, Ron Padgett não parece ter os seus 75 anos. Tem um olhar profundo, uma voz lúcida e uma firmeza sóbria nas palavras que lentamente pronuncia. Paterson, o filme de Jarmusch, é a história de um poeta. Um poeta interpretado por Adam Driver, jovem motorista de um autocarro que atravessa todos os dias a cidade Paterson, em Nova Jérsia. A poesia que a personagem Paterson recita em off e inventa no dia-a-dia urbano é a de Padgett, cinéfilo também declarado, que nos começa por explicar como aconteceu todo este processo: "Tudo surgiu de forma muito simpática. Claro que o Jim Jarmusch conhece muito bem a minha poesia e eu conheço bem a sua obra. Um dia telefonou-me a dizer que tinha um projeto passado em Nova Jérsia e que envolvia poesia, queria saber se eu poderia ser uma espécie de consultor. Passou um ano e nada. Já me tinha esquecido quando o Jim, mais tarde, volta a telefonar-me para me pedir alguns dos meus poemas para o filme. Depois disso, enviou-me o argumento e gostei muito, sobretudo da maneira como estavam os meus poemas incluídos. Disse-me que ainda não era o argumento final e que eu estava à vontade para propor mais poemas meus. Fiquei a pensar nisso e a personagem principal não me saía da cabeça. Vai daí e escrevi um poema "escrito" pelo Paterson. E gostei... Duas semanas depois escrevi mais alguns poemas como se fosse a personagem. Claro que o Jim aproveitou logo e inclui-os no filme. A verdade é que é raro que alguém peça a um poeta para escrever para o cinema... Este filme foi construído à base da amizade."
Nascido no Oklahoma, Padgett é ainda hoje o impulsionador do mítico Poetry Projet, um projeto de poesia sediado numa igreja de East Village, em Nova Iorque. O poeta sempre foi um dos autores preferidos de Jarmusch. Se uma das suas temáticas recorrentes é a amizade, em Paterson, a sua poesia foca-se no dia-a-dia. "Sou um poeta que escrevo o que escrevo. Nunca penso muito em temas... Às vezes, os meus poemas focam-se em pequenos detalhes, pequenas coisas domésticas. Exemplo? Uma caixa de fósforos. Desde muito novo decidi que não iria ser um poeta de um só estilo. Fiz uma promessa de não escrever apenas poemas confortáveis."
Apesar de suspeito, o poeta está encantado com o resultado final de Paterson: "Tem uma qualidade zen... É um filme muito calmo. Trata-se de uma experiência de cinema muito relaxante. Sabe, as pessoas recebem energia quando conseguem relaxar... O filme tem muita vida. As pessoas que o veem não param de falar nele. De alguma forma, é um filme que nos transforma como espectadores e faz-nos meditar sobre as nossas rotinas. Um blockbuster não nos faz sentir assim." Para Padgett o importante é escaparmos da nossa realidade. Um artista da fuga, portanto. Se é verdade que a metamorfose neste motorista de autocarro deu um prazer dos diabos ao poeta, também não é menos verdade que os poemas que foram criados para o filme não são assim tão diferentes dos já publicados. Padgett já era Paterson. A imaginação de Jarmusch encarregou-se de fazer o resto.