A pianista e suas rebeldias

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"Tudo desapareceu. O corpo, o teclado, os sons, as notas, a pauta, a música. Ficou o infinitesimal. Do som e do silêncio. O sublime. A ideia. Nunca ouvi poetas assim. Em nenhum lugar." Quem terá o génio e a arte para deixar assim, no êxtase, os que viajam com a sua música? Uma mulher aparentemente frágil, de suaves mãos. A pianista de " justas rebeldias".

O concerto de Maria João Pires em que "tudo desapareceu" para dar lugar ao "sublime", ao indizível, teve como espaço o Teatro Rivoli, no Porto, em 1985. Cândido Lima, embora reconheça ser difícil encontrar palavras para "a face inexprimível da criação", fixa esse momento extraordinário num texto publicado no Jornal de Notícias. Ela, garante o emocionado crítico, "é uma visionária, pelo som do piano, da alma humana".

E a visionária, "pianista genial", trocou as voltas ao público do Porto. Ou melhor, mudou o programa à última hora. Quem foi ao Rivoli para a ouvir tocar Mozart poderá ter saído desapontado da sala. Maria João Pires não tocou Mozart: "Cansa-me um pouco ver-me quase obrigada a incluí-lo em todos programas", disse no final do espectáculo. Cândido Lima, que naquela noite viveu o sublime, aprovou a alteração. "Se mudou o programa previsto para fugir à máquina e aos esquemas, não tocando Mozart, nem Beethoven nem Chopin, pelos quais se tornou célebre (não sei), isso foi um largo rasgo de inteligência também."

Rebeldias da pianista. No Porto apresentou-se toda vestida de branco. Num concerto no Grande Auditório da Gulbenkian, em Lisboa, manteve a mesma claridade na roupa e surgiu descalça, em palco, indiferente ao rumor de desagrado de alguns assistentes. As regras para Maria João são transitórias, como tudo, afinal, na vida. Tudo. Até se fartar do país onde nasceu e partir para o exílio - como outros portugueses fizeram, noutros tempos, esses acossados pela ditadura salaza- rista.

Quando foi distinguida com o Prémio Pessoa, em 1989, disse a José Mendes, do semanário Expresso, que a rebeldia lhe vem do tempo da infância. Não se dava com outras raparigas, as bonecas ficavam à margem das suas brincadeiras. "O que eu gostava era de andar pelos telhados ou fazer coisas ainda mais malucas como ir com uns miúdos para o meio de uma linha férrea, encontrar um buraco entre os carris onde me pudesse deitar e ficar a ver o comboio a passar-me por cima."

António Victorino d'Almeida foi colega da pianista no Conservatório Nacional, onde a Maria João concluía o curso, tinha apenas 16 anos, com a mais alta classificação. Desse tempo, o maestro lembra-se, como conta ao DN, de uma rapariguinha breve, "a Maria João sempre foi pequena", e "muito viva, inteligente". E já nesse tempo indiciava "ser capaz de atitudes de rebeldia, completamente justas".

Uma dessas rebeldias da pianista, agora no seu exílio em Terras de Vera Cruz, pode ter sido, diz o maestro e também pianista, os três anos em que Maria João não tocou piano. "Oficialmente essa paragem estava relacionada com uma tendinite. Mas eu entendo que foi uma rebeldia: uma rebeldia perante o meio musical português que sempre, diga-se, a irritou um bocado."

A mais famosa pianista nascida em Portugal pondera agora pedir a nacionalidade brasileira. Todavia, recusa que essa atitude seja motivada por "sentimentos negativos em relação a Portugal". É, afinal, um divórcio há muito anunciado ou, se se quiser, pressentido. O Centro de Belgais (Castelo Branco) para o estudo e ensino da música e outras artes, a que Maria João Pires deu parte da sua vida, dos seus sonhos e do seu dinheiro, ficou pelo caminho. Ou melhor, definha depois de considerado um projecto inovador, destinado a jovens criadores. Tinha o apoio do Governo Português que, entretanto, esmoreceu no entusiasmo e nos fundos que atribuía.

Maria João Pires não perdoa aos governantes o golpe que lhe ceifou um sonho. "A música ajuda a pensar e devemos aprender desde pequenos para não limitar os nossos valores. Não há futuro sem uma boa educação, capaz de ensinar os meninos a apreciar coisas que não têm a ver com o dinheiro", disse ao El País, em 2004, num altura em que já era evidente a ruptura com a autoridades portuguesas.

Nessa entrevista ao jornal espanhol, a pianista que ama Brahms e Liszt, e não os toca porque determinadas escalas os dedos das suas mãos pequenas não alcançam, expressa claramente o que pensa sobre os políticos. "Os nossos políticos são uns mentirosos que converteram o meu projecto [Belgais] em algo absurdo. Mas a mim já não me enganam. Viram como saí do País e quiseram que eu voltasse, mas agora estou farta e não aguento mais".

António Victorino d'Almeida não ficou espantado com a partida para o Brasil da antiga colega no Conservatório Nacional. "Ela estava farta da tacanhez , fez muito bem ir embora, fico até com uma certa inveja". Maria João "alinha com o sistema, aceita, mas engana-se quem julga que a tem no papo: quando menos se espera, ela torna-se a tal pessoa rebelde". Só um país como o nosso, refere ainda o maestro, "não entende ou não quer entender" a valor de pessoas como Maria João Pires. Portugal "gosta de viver dentro de um provincianismo medíocre. Esta é a realidade. Muita gente vai embora, e quem fica já está pelas orelhas!"

Aos quatro anos toca pela primeira vez em público, cinco anos depois vencia o 1.º prémio do concurso da Juventude Musical Portugal. A consagração, como quase tudo na pianista, chega cedo: aos 26 anos, com o primeiro prémio do concurso do Bicentenário de Beethoven. Depois a história é conhecida, concertos nas melhores salas do mundo. Muitos deles, por certo, com a mesma magia do recital no Rivoli, no Porto, em que tudo desapareceu para dar lugar ao sublime. E a pianista que proporciona essa leveza é, afinal, uma mulher como as outras. Quatro filhos, uma vida de amores e desamores. Palavras suas, em 1985, a João Quaresma, no JN: "Faço muitas limpezas, ando muito com o aspirador na mão, tomo conta de crianças, tenho poucas ou nenhumas férias."

Uma vida "igualzinha" a outras mulheres, disse. Que sente o tempo como bem escasso, e, por isso, tem um certo "ódio a determinado tipo de política, por verem outras pessoas a passar horas, dias, anos, vidas a perder tempo, a fazer coisas perfeitamente inúteis".

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