Ozu e o cinema que nos conforta
Regressar ao cinema de Ozu é regressar a casa. Deixar os sapatos à porta. Beber chá ou saké. Abandonarmo-nos à terapia dos seus enquadramentos geométricos, que convidam a entrar na paz doméstica. Por outras palavras, é ser-se tomado pelo conforto e harmonia que contagiam a própria experiência na sala escura. Primavera Tardia (1949) está em reposição até 4 de julho, no Espaço Nimas, em Lisboa, e no Teatro Campo Alegre, no Porto, numa cópia digital restaurada. Foi o título que batizou um extenso ciclo dedicado à cinematografia japonesa, agora chegado à reta final (com ainda outro filme a encerrar o programa: Contos Cruéis da Juventude, de Nagisa Oshima).
Primavera Tardia, cuja narrativa suave transporta o espectador na beleza da postura quotidiana, é uma das obras da última fase do mestre nipónico. Passamos por ela - em consonância com o título - como quem passa pelo crepúsculo de uma estação do ano. Yasujiro Ozu (1903-1963), sabemos, foi o cineasta da família: esta enquanto imagem de estabilidade, que o tempo torna efémera. E é sobre isso que o filme se inclina. A saber, o modo como a ordem natural das coisas, a certa altura, quebra um regime de equilíbrio e felicidade. Falamos de uma jovem mulher (Setsuko Hara, atriz musa de Ozu), já a transpor o limite da idade certa para casar, que ignora esse desejo do matrimónio, habituada que está a viver com o pai viúvo. Sente-se bem assim, a olhar pelo seu velho. No entanto, quando ele se apercebe de que está a impedir o curso normal da vida da filha, faz os possíveis para que esta ceda ao "arranjinho" que a tia providenciou... Nada disto, entenda-se, se traduz em alarido dramático. O cineasta de Viagem a Tóquio é tão perfeccionista nos enquadramentos quanto recatado nas emoções. A angústia das personagens expõe-se através de uma delicadeza insuperável, e assenta apenas nestas ruturas da experiência humana. Há uma tranquilidade que impera e uma sabedoria oriental que depura as relações. Não por acaso, na altura da estreia no Japão, Primavera Tardia foi considerado pela crítica como o filme mais profundamente japonês alguma vez realizado.
A grande certeza é esta: com uma simplicidade requintadíssima, Ozu extraiu como ninguém a melancolia das formas - que tanto se vê numa chaleira como na copa de uma árvore - e alcançou o mais alto grau de perfeição